O valor esquecido do vazio.

 


                        Um dos hits marcantes do rock nacional dos anos 80 foi a música "Tédio", da banda Biquini Cavadão. A letra retratava a angústia gerada pela sensação de vazio e pela falta de atividades interessantes para ocupar o tempo:

"Sabe esses dias em que horas dizem nada; e você nem troca o pijama, preferia estar na cama; um dia, a monotonia tomou conta de mim; é o tédio, cortando os meus programas, esperando o meu fim. Sentado no meu quarto, o tempo voa; lá fora a vida passa, e eu aqui à toa; eu já tentei de tudo, mas não tenho remédio pra livrar-me deste tédio...."— Tédio, Biquini Cavadão

Vinte anos depois, eu estava numa festa quando um amigo comentou sobre uma paródia dessa mesma música, na versão "Adultério", do Mr. Catra. Ele disse em tom de brincadeira: "Na nossa adolescência cantávamos Tédio, mas a galerinha de hoje parece se divertir muito mais". A letra, num tom entre o hedonismo raso e o apelo sexual dizia:

"Sabe esses dias que tu acorda assim de ressaca; muito louco, doidão? Sua roupa tá cheia de lama e a cachorra tá na cama; É o dia que a orgia tomou conta de mim, assim Eu saio com o Léo, o Edgar e o Denis, vem o Sandrinho; Na 4x4 a gente zoa; Whisky e energético, quanta mulher boa, hahaha; Ui, o bagulho tá sério; Vai rolar um adultério. Sua mina só reclama e tira a sua paz; Ela é chata demais; Procura a profissional, meu mano; Que ela sabe o que faz..."— Adultério, Mr. Catra

A comparação das duas pode parecer curiosa e aparentemente sem sentido, mas revela uma mudança cultural significativa. Em um intervalo relativamente curto, passamos da expressão introspectiva do tédio existencial para a celebração da agitação sem freio. O que antes era uma angústia silenciosa se tornou uma euforia barulhenta. E, talvez, isso diga muito sobre o nosso ritmo de vida atual.

Agora, mais duas décadas se passaram, e vivenciamos a era da explosão tecnológica. Redes sociais, aplicativos, conteúdos personalizados e inteligências artificiais disputam cada segundo da nossa atenção. Estamos no limite do que o corpo e a mente conseguem acompanhar.

Essa aceleração criou uma verdadeira aversão ao tédio. Cada momento de vazio é preenchido instantaneamente por notificações, vídeos curtos, feeds infinitos e interações digitais. Fugimos do silêncio interior com uma urgência quase desesperada. A quietude passou a ser algo desconfortável, até ameaçador. Talvez suportemos cada vez menos nossa própria companhia. Mas tudo tem um custo. Ao não aceitar o vazio, nos tornamos cheios demais — e, por isso, menos atrativos a nós mesmos e aos outros. Informação por informação, encontra-se mais facilmente — e mais ao gosto de cada um — no mundo do que em alguém que apenas inspira... e nunca mais solta o ar. Nossa voz interna se torna caótica, e nós, desorganizados, volúveis. 

Sabe quando passamos uma noite em claro e, de repente, a mente simplesmente não consegue mais acompanhar? É como se implorasse por uma trégua — não só para descansar, mas para processar, limpar e reorganizar o que ficou solto no sistema. Sem essa pausa, sobrecarregamos nossos circuitos internos, acumulando fragmentos que deveriam ter sido descartados — como arquivos corrompidos num HD antigo. Talvez por isso a quietude seja tão vital: uma meditação breve, uma caminhada sem destino ou o simples ato de parar. São formas de reset silencioso, que estabilizam o filtro com o qual percebemos o mundo enquanto estamos despertos. E com os canais menos turvos, enxergamos melhor, sentimos melhor e participamos com mais qualidade e entusiasmo. Dizem que os introspectivos recarregam melhor sua bateria na solitude, enquanto os extrovertidos no agito do mundo. Pode ser que os níveis precisem ser modulados de acordo com a nossa personalidade e necessidade, mas é inevitável constatar que pertencemos a uma era na qual todos colocam o pé no acelerador e o freio foi esquecido. 

 Talvez o tédio não seja exatamente um inimigo. Grandes pensadores como Nietzsche e Bertrand Russell destacaram o valor do ócio, do tempo livre e até mesmo da monotonia como elementos fundamentais para a reflexão, criatividade e autoconhecimento. Nietzsche afirmava: "todas as grandes coisas precisam primeiro usar máscaras monstruosas para inscrever-se no coração da humanidade". E se o tédio for uma dessas máscaras?

Vivemos como se fôssemos uma sociedade inteira acometida por TDAH — saltando de estímulo em estímulo, incapazes de manter atenção sustentada em uma única ideia por mais que alguns instantes. Essa avalanche de conteúdos variados, velozes e fragmentados nos impede de pensar com profundidade. Não treinamos mais a mente para o silêncio ou para contemplar longamente um tema até que insights relevantes possam surgir. É justamente nesse espaço, entre um pensamento e outro, que surgem compreensões inesperadas sobre a vida, os sentimentos, as dores e desejos mais íntimos. Porém, para que isso aconteça é preciso saber parar, e na atualidade, parar tornou-se quase impossível.

 Se  Zygmunt Bauman identificou uma "realidade líquida", talvez estejamos agora ingressando numa nova transição de fase, uma era ainda mais instável e agitada, que pode ser tranquilamente denominada "realidade gasosa", na qual tudo circula tão rapidamente que perdemos capacidade de contemplação e reflexão. Relações, arte, produtos, tudo é modificado numa velocidade que nos impede de saborearmos. Ultimamente, até as fronteiras entre nações parecem não ter mais bordas tão determinadas assim. 

A maioria das pessoas exige que os conteúdos sejam cada vez menores e mais diretos ao ponto, sem perceber o quanto da beleza, do mistério, da sutileza, do verdadeiro conhecimento e da arte tem sido cortados — ou, em muitos casos, nem sequer chega a ser concebido.

A discrepância nas letras das músicas comentadas não é apenas um dado cultural; é um retrato da nossa relação com o tempo e com nós mesmos. Se antes o vazio do tempo era uma experiência desconcertante, hoje ele é evitado a qualquer custo. Em Notas do Subsolo, Dostoiévski já advertia para esse risco devido a natureza humana, sem nem imaginar o que viveríamos agora:

"Deixem-nos sós, sem livros, sem ocupações, e imediatamente ficaremos confusos, perdidos — não saberemos a quem nos unir, o que devemos apoiar, o que amar e o que odiar, o que respeitar e o que desprezar."

Ou ainda:

"Deixe o homem comer, beber, descansar, ofereça-lhe prosperidade, e mesmo quando não tiver mais nada além de dormir e viver tranquilamente, ele destruirá tudo só para criar caos e sofrimento." Assim, pode rolar a pedra montanha acima, e repetir o processo eternamente, porque a dureza da vida representada simbolicamente na escalada contrabalança e distrai da repetição do caminho em uma existência passageira. A pedra bloqueia o horizonte de Sísifo, e ele só vê o trabalho do momento enquanto o tempo escorre. Através da ocupação as dúvidas existenciais também são amenizadas. O dito popular: Cabeça vazia, oficina do diabo; não é tão difundido à toa. Pode ser infernal para alguns refletirem sobre questões indetermináveis ou misteriosas. Nem todos precisam de distração sobre o sentido da vida, mas o risco para muitos, quando a mente está desocupada, é tenderem a se desviar para ideias prejudiciais, como fofocas, preocupações excessivas ou más ações. 

O ser humano parece ter dificuldade em lidar com a paz prolongada. E essa dificuldade, potencializada pela hiperconectividade contemporânea, vem gerando um mal-estar difuso.

Para as novas gerações o desafio será ainda maior. Tanto pelo acelerar do ritmo de produção e consumo, quanto pelos novos costumes. Crianças que antes brincavam na rua, jogavam bola em chão de terra, conversavam com suas bonecas, ou inventavam algo juntas, hoje recebem celulares e tablets como forma de evitar qualquer desconforto. Mal aprendem a falar e já são expostas a uma avalanche de estímulos visuais e sonoros. Muitos pais, sobrecarregados, recorrem às telas como solução imediata para acalmar os filhos — mas, ao fazerem isso, privam as crianças da chance de desenvolver habilidades como paciência, tolerância à frustração e capacidade de contemplação.

Famílias inteiras podem estar reunidas na sala, mas cada um imerso em seu próprio universo digital, sem partilha, sem silêncio comum, sem tédio compartilhado. E é justamente o espaço vazio que poderia ensinar a todos nós algo importante sobre convivência e interioridade.

Podemos, inclusive, buscar no próprio universo uma inspiração para revalorizar o vazio. Apesar de toda imensidão e do movimento cósmico, estrelas em translação e a dança das galáxias, o que sustenta essa dinâmica grandiosa é justamente o espaço entre as coisas. Estrelas estão separadas por anos-luz de distância, e galáxias, às vezes por bilhões de um vazio ainda mais profundo. Se na grande escala é assim, na pequena também. Dentro dos átomos, o núcleo — onde se concentra quase toda a massa — ocupa uma parte minúscula em relação ao todo. A estrutura do universo é feita, em grande parte, de silêncio e distância. Talvez devêssemos aprender com esse modelo: não é a densidade absoluta que permite harmonia, mas o espaço entre uma coisa e outra. É no intervalo que a vida se organiza.

Quem sabe não seja a hora de resgatarmos práticas simples e transformadoras: a meditação, a atenção plena, uma caminhada sem pressa, uma tarde sem obrigações. Observar os próprios pensamentos, respirar conscientemente ou apenas assistir ao mundo lá fora sem necessidade de ação já seria um ato revolucionário. 

Iniciamos comparando músicas, e agora fecharemos com outra. 

Na canção Testamento, Vinicius de Moraes nos lembra da urgência de parar: "Você que não para pra pensar que o tempo é curto e não para de passar; você vai ver um dia, que remorso, como é bom parar, ver o sol se pôr ou ver o sol raiar; e desligar, e desligar."

Isso é exatamente o que precisamos reaprender: desligar um pouco, desacelerar, aceitar o vazio como parte da vida e permitir que o tédio nos reconecte à simplicidade de apenas existir. 

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"Somos assim. Sonhamos o voo, mas tememos as alturas. Para voar é preciso amar o vazio. Porque o voo só acontece se houver o vazio. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Os homens querem voar, mas temem o vazio. Não podem viver sem certezas. Por isso trocam o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram." - Rubem Alves 

(Essa citação tem a ver com a inquietação por medo do vazio; e resolvi colocá-la aqui como epílogo não oficial; Cada um de nós constrói a própria gaiola — mesmo na aparente liberdade de fazer o que se quer a cada instante, ininterruptamente. O segredo talvez passe por lembrar de deixar uma abertura em nossa grade mental. E esse espaço só pode ser concebido no vazio.)


Comentários

  1. Adorei. Precisamos parar, respirar e pensar. Precisamos acalmar a mente...exercer o ócio criativo. Deixar o vazio entrar, receber e aceitar. Não dá pra ocupar tudo o tempo inteiro, fugir das angústias q nos são inerentes e faz parte do viver, do amadurecer...fazendo parte da vida!
    Não há como festar sempre, é empurrar tudo pra baixo do tapete, um dia o tapete voa.

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  2. Exatamente, ótimo comentário; Obrigado. E adorei essa: Não há como festar sempre, é empurrar tudo pra baixo do tapete, um dia o tapete voa.

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