Canto para a nossa morte!

                                   


             
Em Canto para minha morte, Raul Seixas enumera possíveis encontros com o fim, mas expressa o desejo de recebê-lo em sua melhor versão. Cada um idealiza a sua, mas creio que todos, no fundo, querem encontrar sentido, ou uma centelha de paz, antes desse momento derradeiro.

“Um acidente de carro
O coração que se recusa a bater no próximo minuto
A anestesia mal aplicada
A vida mal vivida
A ferida mal curada
A dor já envelhecida
O câncer já espalhado e ainda escondido
Ou até, quem sabe, um escorregão idiota
Num dia de sol, a cabeça no meio-fio
Oh morte, tu que és tão forte
Que matas o gato, o rato e o homem
Vista-te com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar”

            Alguns vivem plenamente, constroem família, morrem tarde e antes de seus filhos e netos. Realizam suas obras conforme seus desejos, aspirações e necessidades. Outros têm seus caminhos interrompidos cedo demais, deixando um gosto amargo de “quero mais” em quem fica.
           


O peso da ausência

            Quando a morte nos toca, o luto nos ensina, à força, a lidar com o vazio. Não é apenas a pessoa que parte, mas também um conjunto único de gestos, histórias e conexões que desaparece com ela.
        No início, a dor é lancinante, mas com o tempo, ela se acalma, e aprendemos a nadar carregando a memória como boia. Aos poucos, percebemos que a pessoa ainda vive no que tocou: no sorriso de um parente, na obra que ajudou a construir, nas pequenas mudanças que inspirou. Quando amigos se reúnem e lembram de quem se foi, o pedacinho que cada um carrega dela dentro de si pode se somar ao dos outros, fornecendo a todos uma presença quase sobrenatural da pessoa perdida. Como diz a passagem bíblica em Mateus 18:20: “Porque onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles.” 
        O luto é, paradoxalmente, a forma mais pura de amor — ele só existe porque algo precioso demais para ser substituído nos foi arrancado.


O direito de escolher o fim

          A eutanásia, em nosso estágio atual de desenvolvimento, pode ser a solução mais digna para casos de doenças dolorosas e irreversíveis. É uma liberdade imensa, e por isso exige responsabilidade proporcional: reflexão profunda, avaliação externa cuidadosa e busca sincera por alternativas antes de decidir. Quando ainda há possibilidade de vida com qualidade, o cuidado coletivo e a solidariedade tornam-se essenciais. Afinal, aliviar a tristeza de um é sempre uma forma de alegrar dois. 

            No longa-metragem argentino 'Minha obra prima' de Gastón Duprat, esse aspecto do desejo de morrer e do retorno à alegria da vida quando o pior passa é muito bem trabalhado. O filme é bem divertido, mas aborda temas sérios como a eutanásia e a liberdade humana de decidir sobre a continuidade da própria vida, além dos perigos de decisões impulsivas. As reviravoltas permitem que o personagem, inicialmente desesperançoso, reencontre prazer através da arte, amizades e amor.

 "Eu só sei que confio na moça; e na moça eu ponho a força da fé; somos nós que fazemos a vida; como der ou quiser ou puder, sempre desejada, por mais que esteja errada, ninguém quer a morte, só saúde e sorte... " (Gonzaguinha)


Entre o sagrado e o quântico

           Seja pela fé ou pela ciência, o homem busca respostas para o mistério que encerra todas as histórias. Até na física teórica há espaço para especular a respeito de uma “imortalidade quântica”: morrer apenas para os outros, mas seguir vivo em uma nova rota alternativa, carregando as consequências de nossos atos.

     Existem também os que rezam por longevidade, sonhando com uma imortalidade difícil de suportar ou sequer compreender. Não fosse a exploração que tantas religiões praticam, livros sagrados poderiam ser interpretados com mais lucidez, propagando o bem mesmo com seus erros. Mas, quando usados como instrumento de controle, ou exploração financeira, perdem até a capacidade de oferecer conforto na hora final. Por outro lado, a fé e a espiritualidade quando exercidas de maneira natural e direta, ou bem conduzidas, podem ser um instrumento para alcançar paz, harmonia e — por que não? — sabedoria

            Mesmo com o pé atrás, admiro as tarólogas que, ao verem o arcano 13, “A Morte”, sorriem e dizem: “transformação”. Estão certas. Morte e nascimento são lados da mesma moeda que mantém o universo em renovação constante. Para que o novo surja, algo precisa partir.


O perigo de nunca partir

            Um mundo sem morte pode parecer fascinante, mas carregaria um desastre: esgotamento de recursos, estagnação, líderes eternos bloqueando mudanças. Finitude não é defeito do projeto — é o motor da transformação.


O valor da efemeridade

            Enquanto o futuro não chega com suas respostas complexas, temos o presente — agraciado pela consciência da finitude. É ela que torna a vida extraordinária. Crianças constroem castelos de areia sabendo que a onda virá destruí-los, e ainda assim sorriem. Talvez intuam que a beleza mora exatamente nesse ciclo de construção e destruição.

        Camus diria que a morte é a grande reveladora do absurdo: vivemos sabendo que o final é inevitável e, mesmo assim, teimamos em construir castelos — de areia ou de concreto. Para ele, não há salvação definitiva nem sentido último a ser encontrado; há apenas o ato de viver, consciente do vazio, e escolher fazê-lo com intensidade. Como Sísifo, estamos condenados a empurrar nossa pedra, mas somos livres para fazê-lo sorrindo. A vitória não está em chegar ao topo, mas em saborear cada passo da subida.


Última cena

            Que possamos, enquanto nosso corpo durar, acordar com a paixão renovada pela vida e o desejo ardente de participar dessa grande história que se desenrola a cada segundo. Por nós, e por todos que contribuíram com nossa trajetória, especialmente os que já se foram. Independentemente do que vem depois — céu, silêncio absoluto ou talvez algo que não concebamos — a vida é preciosa justamente por sua brevidade, mistério e possibilidades.

          Para místicos, a consciência é eterna. Para céticos, ela se apaga. Mas seja qual for a verdade, é aqui, agora, que fazemos parte do grande espetáculo de existir em plenitude. O essencial é viver de modo que, quando nosso encontro chegar, sejamos capazes de sorrir para Ela. Raul sonhou que a morte o encontrasse bem vestida, certamente desejando alertar que nós também nos preparemos para encontrá-la em nossa melhor versão. 




Comentários

  1. Tema merece um livro! Leva a reflexões que tenho apenas em velórios. O texto: direito de escolher o fim, para mim, se destacou. Talvez porque nos outros não temos opções. O longa 'Minha obra prima' deve ser genial. Me lembrou o livro:SE VOCÊ PRECISAR, EU VOU LUTAR POR VOCÊ (https://www.amazon.com.br/dp/B0F2GLCC61) em que o autor num momento de dificuldade enfrentando uma tetraplegia fala para seu pai que: "paraplégico serei medalhista paraolimpico. Mas tetra não dá, você por favor, não me deixa assim aqui!" E num outro momento tem a sensação de quase morte consciente e diz: "Caramba! Morrer é bom de mais!" REPITO Glauco, esse assunto merece um livro!

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  2. Obrigado Castro, quem sabe um dia eu sigo os passos de certos amigos, valeu a leitura e comentário.

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