Quem Não "Ciúma", Não Ama!?!?!
A noite, embora alegre para
todos, para um grande amigo chegou carregada. Copo na mão, os olhos perdidos, mal
conseguia conversar. Tentei animá-lo puxando assunto e no meio do nosso papo,
deixou escapar: “Ciúmes não é de todo mal.” Embora estivesse apenas complementando meu comentário, percebi que o dito servia para ambos. Mas, no caso dele, não era teoria: era ferida. Apaixonara-se por uma moça de espírito
livre, dessas que não se deixam aprisionar por rótulos ou compromissos, e agora
sofria a contradição de desejar o que ela não queria oferecer.
Moraes Moreira já cantava com
sabedoria popular: "O ciúme não tem remédio"; e nem nunca
terá… Na coreografia dos relacionamentos, no entanto, existem passos essenciais que envolvem: flexibilidade, coragem, entrega, perdão, amor próprio e pelo companheiro(a), assim como a
capacidade de reconhecer a tensão sem o propósito de destruí-la. Cada um
entende seus limites e o que consegue ou deseja suportar. Mas, vale à pena
lembrar que maiores excitações derivam de grandes perigos. Uma ousadia ou
uma desistência podem estar igualmente bem balanceadas. Apenas a história
de cada encontro revela se o ciúme será benéfico ao entrosamento ou o
destruirá.
Nem mesmo os relacionamentos
abertos ou os trisais estão imunes ao ciúme. É verdade que muitos que escolhem
esse caminho podem desenvolver maior tarimba para lidar com inseguranças e aprender a
negociar limites de maneira aberta. Afinal, enfrentam com maior frequência acontecimentos que os colocam a prova. Mas, quanto mais participantes, maiores
também são as chances de divergências. O ciúme pode brotar até nos arranjos
mais livres; talvez não com a mesma intensidade de uma relação monogâmica, mas
com novas formas e novas dores.
No caso do meu amigo, no entanto, naquela noite era nítido o quanto ela transitava leve entre todos, trocando risos, olhares demorados, como quem coleciona possibilidades sem culpa. Talvez não houvesse maldade, apenas liberdade, com a pitada de individualismo e expansividade que caracterizam o nosso espírito de época. Mas para ele, cada gesto era cortante. A liberdade dela o aprisionava e seu desolamento era a constatação de um desencontro entre sede e fonte. Algo que parecia logo ali, escapava entre os dedos.
O ciúme também nunca nasce do nada. Não
é só insegurança: é instinto primitivo, desenvolvido desde os tempos em que
perder o parceiro significava perder proteção, alimento, até a própria
sobrevivência. O animal em nós vigia, alerta, teme. E age para neutralizar ameaças, reais ou imaginárias.
Na vida contemporânea esse instinto encontrou novos canais, seja no aplicativo aberto de madrugada, no sumiço inexplicado, uma curtida fora de lugar, um comentário dúbio, ou num visualizado e não respondido. As novas janelas de interação ampliam a vigilância e, muitas vezes, criam fantasmas que não existiriam fora da tela. No entanto, o excesso de exposição e comparação só multiplica as chances da sombra da posse se ampliar.
E, de fato, como ele disse: ciúme
não é de todo mal. Quando aparece, aponta o lugar exato onde repousam nossos
valores e vulnerabilidades. Ele diz: “aqui está o que é importante para você”.
Ignorá-lo é trair a si mesmo. O risco está em inflá-lo a ponto de transformar o
cuidado em prisão, sufocando quem amamos e nos sufocando junto. Uma espiral sem
fim, capaz de arrastar os dois para baixo.
O desafio não é eliminá-lo, essa tentativa pode inclusive intensificá-lo, mas é importante ouvi-lo sem deixar que governe. Como disse Nietzsche: O que não nos mata nos fortalece.”
Esse equilíbrio é o mais difícil.
O ciúme pode reavivar laços antigos — quem, depois de uma pontada, já não se apaixonou pela mesma
pessoa num relacionamento longo? Por outro lado, pode também corroer as raízes de um afeto em
construção — quem nunca errou a mão, não é mesmo? É sentimento que oscila como
gangorra: ora faz chover em campos esquecidos, ora traz seca para os mais carentes.
Na trilha do amor não dá para
andar em linha reta porque o terreno é movediço, e o ciúme está sempre à
espreita, podendo oferecer cenários opostos dependendo de como é tratado. Não
existe regra fixa: quando o coração pulsa mais forte, a única proibição é não o
seguir! Resta apenas torcer para estarmos ao lado de quem nos mereça.
Nos casos mais graves, no entanto, quando a liberdade do outro fere constantemente nossos limites, o melhor é reconhecer cedo que não há encaixe e seguir outro caminho, antes que a relação se torne tóxica. Nos casos moderados, quando há deslizes ou inseguranças reais, o caminho é o diálogo honesto: transformar o ciúme em conversa, e não em acusação. Já nos casos mais leves — um olhar, uma ausência, um detalhe sem maior peso — convém respirar fundo e não supervalorizar, pois muitas histórias belas acabam por pequenas faíscas emocionais mal administradas; principalmente em festas onde um ou ambos exageram na bebida e as oportunidades se fazem presentes. Resumindo: firmeza para cortar excessos, abertura para dialogar e serenidade para não dar importância ao que não tem.
Duvido de quem não "ciúma", e
temo bastante quem ciúma demais. Tanto pelo risco da instabilidade introduzida
no conjunto, quanto ser um exagero típico de quem tem culpa no cartório e projeta.
Se é possível defender a capacidade
de amar desapegadamente, embora eu considere difícil entre apaixonados, é
preciso dizer sem rodeios: quem ciúma exageradamente não ama. No Brasil, onde
os feminicídios se multiplicam em números alarmantes, o ciúme adoecido se torna
tragédia coletiva. Desde a ousadia livre de Leila Diniz até os casos mais
brutais de hoje, vemos como a liberdade feminina ainda é punida pela ignorância
e pela falta de educação emocional. Abuso de drogas como álcool e cocaína
acentuam a agressividade, mas a raiz está no despreparo para lidar com a
frustração. Quando alguém demonstra não nos querer ou nos desrespeita, basta
partir — com elegância, ainda que com dor. Violência não resolve: apenas
multiplica problemas e perpetua a barbárie.
Da mesma maneira que precisamos entender e trabalhar o nosso sentimento é preciso também lidar com
o ciúme alheio. Quantas vezes relações promissoras desmoronam porque um dos
dois transforma pequenas inseguranças em tormenta? Ninguém gosta de ser
controlado ou vigiado a cada passo. É preciso separar o que tem fundamento — e
merece esclarecimento, desculpas ou até mudança de atitude — dos devaneios que
nascem apenas da mente ansiosa alimentada por pensamentos obsessivos.
Quando o ciúme vem sem raiz, não
há amor que resista: sufoca antes de florescer. Essa fronteira tênue foi levada
ao cinema em 1964, no inacabado L’Enfer (Inferno), do
mestre francês Henri-Georges Clouzot, estrelado pela exuberante Romy Schneider
e Serge Reggiani. Mesmo sem ser concluído, o filme se tornou uma obra belíssima
e inovadora: nos jogos de câmera, nas cores saturadas, nas distorções de luz e
de movimento, Clouzot traduzia o ciúme em imagens alucinadas — ora mostrando a
amada como deusa, ora como demônio. Um lembrete de como o
excesso pode deformar a realidade até o delírio.
Na maioria dos casos, não compensa seguir o Canto de Ossanha (como no samba de Baden e Vinicius, que alerta contra paixões ilusórias ou arranjos problemáticos demais para nos comprometermos). Em outros, a manhã de um novo amor inevitavelmente brotará e esse sentimento pode ser a pimenta do reino.
Como na música, é sempre a forma como tocamos que define se encontraremos dissonância ou harmonia. O ciúme não desaparecerá da vida humana; cabe a nós decidir se será semente ou veneno.
“Quem cultiva a semente do amor
Segue em frente e não se apavora
Se na vida encontrar dissabor
Vai saber esperar a sua hora” (G Revelação)
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