Abundância!

                                            "Cornucópia, símbolo representativo de fertilidade, riqueza, e abundância." 

É curioso pensar que, desde o primeiro instante em que o universo resolveu existir, tudo surgiu de um transbordamento absurdo, uma "explosão" magnífica de energia que depois se decantou em matéria. Ele não foi discreto ou econômico: nasceu da abundância, da sobra, do exagero cósmico, um processo inflacionário em escalas inimagináveis no qual o espaço tempo, palco de nossa existência, se desdobrou. Estrelas nasceram e morreram e ainda o fazem, agora na geração Z delas, em espetáculos pirotécnicos, desperdiçando luz, calor e espalhando elementos essenciais à vida por toda parte, sem a menor cerimônia. E nós, humanos, andamos por aí preocupados se há o suficiente para pagar as contas do mês que vem. Tudo bem que temos que nos adaptar ao sistema no qual estamos inseridos, mas quantos de nós, sem necessidade, se deixa angustiar por um futuro que pode nem acontecer? E pior, quantos outros estão tão viciados no jogo de ganhar, investir, acumular, que nem percebem mais quem se tornaram nesse processo. 

O I Ching, com sua sabedoria milenar e metafórica, coloca-nos exatamente nessa tensão entre o infinito e o cotidiano, diriam os antigos sábios entre o céu e a terra. No hexagrama da Abundância, o trigrama superior, que normalmente fala sobre o que envolve a situação, sobre o externo, é o Trovão: puro movimento, energia, crescimento, propagação. O trigrama inferior, o Fogo, é a luz interna que organiza elegantemente essa energia frenética. Abundância, portanto, é movimento com clareza, dinamismo com direção. Não é simplesmente ter muito, mas saber exatamente o que fazer com o que se tem. 

Outra mensagem interessante que podemos destacar no livro das mutações é sugerida pelo próprio título. O Universo está em constante transformação, e ciclos de ganho e perda se alternam inevitavelmente para todos. Podemos antecipar reversões e estender o período favorável quando estivermos na fase boa, resistindo da melhor maneira à tendência ao desarranjo; como também podemos esperar com paciência e determinação essa fase retornar, quando estivermos atravessando períodos turbulentos.  É no auge de um ciclo, que o outro sutilmente se inicia, tal qual observamos na alternância de dia e noite, ou nas luas cheia e nova. 

           


Minha avó dizia: Tudo passa! E um dia nossa vida também passará. Que saibamos, portanto, viver em plenitude enquanto estivermos aqui e com poder de influenciar os acontecimentos para melhor. 

A vida, aliás, está cheia de pequenos segredos paradoxais. Basta observar uma árvore: ela produz frutos, sementes, sombra, abrigo e, depois, deixa cair suas folhas sem apego algum. Não acumula nem sofre pela perda. A abundância, para ela, é fluxo. Quem dera conseguíssemos entender essa simplicidade. Ao contrário, criamos sistemas sofisticados para fabricar escassez artificial. Dinheiro, atenção, sucesso – tudo parece sempre insuficiente, criando uma ansiedade constante. O curioso é que, quanto mais perseguimos a fartura, mais distante ela parece estar.

Talvez devêssemos observar as crianças. Para elas, um pedaço de madeira vira espada, cavalo ou nave espacial. A abundância da infância reside justamente na capacidade de imaginar, de inventar mundos a partir do nada. São donas absolutas de uma riqueza invisível que nós, adultos, esquecemos como acessar.

A linguagem humana também é prova viva dessa fartura. Palavras geram significados infinitos, frases abrem caminhos múltiplos. Quantas histórias cabem numa única vida? Quantas vidas numa única história? O simbólico é inesgotável, e a imaginação é a nossa cornucópia particular. Criamos poemas, revoluções, danças, memórias. A linguagem é o nosso primeiro investimento em abundância – sem custo, sem limites, sem fronteiras.

Nosso próprio corpo é um exemplo de excesso bem administrado: trilhões de células coexistem em harmonia perfeita com bilhões de bactérias, pensamentos e emoções em constante diálogo. Tudo acontece numa aparente desordem, mas em perfeita abundância biológica. Não é controle rígido, mas cooperação fluida e adaptativa.

E então, qual seria a nossa grande armadilha? Exatamente a obsessão pelo acúmulo. Desejamos sempre mais, sem perceber que o verdadeiro prazer não está no possuir, mas no desfrutar plenamente. Dois olhos atentos e sensíveis conseguem perceber mais beleza num pôr do sol do que mãos cheias de ouro jamais poderiam sentir. É a abundância da percepção, que não precisa de cofres para ser absorvida, sentida, transformada e devolvida.

As tradições espirituais já sabiam disso há milênios. Taoístas falam do equilíbrio sutil. Budistas alertam sobre o apego. Estoicos nos lembram da efemeridade. Todas  dizem, com vozes diferentes, algo semelhante: a abundância é estado interno — não conta bancária.

Já os ateus, por sua vez, não rejeitam apenas dogmas religiosos, mas também a ideia de que uma vida sofrida e restrita deva ser vista como virtuosa. Para muitos, aquele velho ensinamento de que “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus” precisa ser melhor interpretado — ou, quem sabe, definitivamente revisto. Afinal, não seria mais justo desejar um mundo onde todos possam prosperar com dignidade?

Entre os cristãos, talvez a essência do “ame ao próximo como a si mesmo” esteja em amar com eficiência — não no sentido frio, técnico, mas naquele que ultrapassa os limites do nosso condicionamento. É um pensar abrangente que começa simples: cuida do cotidiano, do familiar, do comunitário, do regional. Mas que, por princípio, se abre também ao desconhecido — estendendo, sempre que possível, os privilégios de uma atenção repleta dos melhores sentimentos e intenções.

E o mais bonito é que ninguém precisa perder nada para navegar assim. Não exige sacrifícios desproporcionais. Basta, ao longo do caminho, manter um olhar atento e generoso visando o melhor cenário geral. O amor, quando tende ao infinito, ganha outro nome: compaixão.

Quanto mais damos, mais recebemos. A generosidade aumenta as possibilidades do mundo, e quanto ao nosso estoque, ele não diminui — pelo contrário, retorna ampliado, no tempo certo, de forma inesperada. Quem reparte amizade, compreensão, carinho ou recursos materiais experimenta uma matemática diferente, na qual dividir multiplica e doar acrescenta. Parece mágica, mas é apenas a vida mostrando sua lógica própria. Muitos, no entanto, cobram que seu sakê seja derramado — quente, farto e com reverência — mas, ao servir, não usam da mesma delicadeza, fazem da generosidade um ritual seco — como quem esquece que o sabor do sakê está também em como se oferece.

Mas, nem todo derramamento é sabedoria. Como dizia um velho provérbio que minha mãe costuma ouvir do meu avô e sempre repetia para nós, mesmo nos tempos eletricidade abundante: “Muito azeite apaga a luz.” A abundância não é exagero, nem ostentação disfarçada. Quando perde a medida, o que era brilho vira fumaça; o que era gesto vira desordem. Confundimos abundância com excesso e acabamos apagando o que deveria iluminar. Saber quando parar, quando poupar, quando ceder espaço — isso também é ser abundante.

Claro, abundância também envolve riscos calculados e decisões corajosas no aspecto material. No mercado financeiro, nas mesas de poker ou na vida cotidiana, saber quando avançar e quando recuar é fundamental. Quem domina esse jogo entre ousadia e prudência não só prospera materialmente, mas também emocionalmente, evitando as armadilhas da ganância desenfreada e mantendo um equilíbrio mental prazeroso. 

Não se trata apenas de escolhas pessoais. Escassez, muitas vezes, é uma estratégia. Quando poucos decidem o que muitos podem acessar, a abundância se torna ferramenta de controle. Manter a sensação de falta é uma forma eficaz de gerar obediência. O que é apresentado como realidade intransponível pode, na verdade, ser um projeto deliberado. A fartura existe, mas não interessa que todos a vejam.

A escassez pode ser pensada como um erro de programação coletiva. Um bug no código da percepção. O planeta transborda recursos, a mente humana transborda ideias — mas seguimos operando no modo pânico. Está na hora de um restart. Temos os recursos e o conhecimento para transformar totalmente nosso planeta e a forma como vivemos e nos relacionamos. Abundância é a versão mais atualizada da consciência: onde dar sentido pesa mais que ter razão, e dividir é sempre a melhor multiplicação.

Mesmo em contextos difíceis, a abundância permanece possível. Ela é, acima de tudo, uma maneira de enxergar. Uma casa pequena vira lar quando há calor humano, uma refeição simples vira banquete quando compartilhada com quem gostamos. O contentamento é o verdadeiro tesouro. 

Viver em abundância é também uma forma de resistência. Resistir ao excesso de ruído, à pressa imposta, ao desejo infinito que nunca se satisfaz. Retornar à simplicidade não é retrocesso — é refino. Menos coisas, mais tempo. Menos promessas, mais presença. Um oceano interno de tranquilidade, no qual as ondas produzidas são para temperar o nosso surf na vida e não para tsunamis. 

Se existe um segredo, ele talvez more nos intervalos. No espaço entre um gesto e outro, entre o que ofertamos e o que recebemos sem perceber. Afinal, o universo é abundante no vazio entre as coisas — e é justamente ali que tudo interage, se toca, se transforma. Abundância é a arte de viver como a terra: solo fértil, mesmo quando aparentemente quieta. Porque, às vezes, o que nos enriquece de verdade é aquilo que nem notamos crescer — até que floresce, imenso, dentro de nós e transborda.

E mesmo a morte — sim, ela — participa desse ciclo abundante. Nada se perde; tudo se transforma, nos lembra Lavoisier, estendendo da química para a biologia. O que se desfaz aqui fertiliza ali. Um corpo devolvido à terra alimenta raízes, sementes, histórias futuras. A decomposição é o ato mais generoso da biologia. Somos abundantes até no fim, quando enfim retornamos a abundância universal.

Dizem que não levamos nada dessa vida. Mas quem garante que não levamos, justamente, o que distribuímos? A transformação para a qual contribuímos e nos enche de sentido. E, durante o processo, talvez o universo funcione como aquele amigo excêntrico que só nos devolve o que emprestamos aos outros. Se for mesmo assim, melhor garantir que as malas estejam cheias de risos compartilhados, tempo bem gasto e histórias boas. O resto expira no aeroporto.

        "Por cima uma laje;

                                          Embaixo a escuridão;

                                                                          É   fogo, irmão;

                                                                                    É fogo, irmão"

           


Comentários

  1. Muito bom!

    "Riqueza verdadeira é a capacidade que cada um tem para experimentar a vida plenamente"

    Henry David Thoreau

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