O treinamento da sétima função

 

 A premissa de Quem Matou Roland Barthes?, de Laurent Binet, é irresistível: e se o acidente fatal do semiólogo francês não fosse um mero infortúnio, mas um assassinato? O motivo? Um manuscrito contendo a lendária sétima função da linguagem, um poder tão absoluto que permitiria persuadir qualquer um a fazer qualquer coisa. Um thriller filosófico e uma sátira mordaz do meio acadêmico francês dos anos 1980, o livro desfila por uma Paris habitada por gigantes do pensamento — Foucault, Derrida, Eco, Kristeva —, mas os veste de caricaturas, o que desperta tanto encanto quanto críticas acaloradas.

Foucault aparece como um excêntrico hedonista, Derrida é o mestre da verborragia indecifrável, assim como Lacan, Kristeva assume um tom conspiratório, e Eco, bom, Eco parece estar sempre dois passos à frente da trama. São figuras grandiosas equilibradas entre o tributo e a zombaria. A crítica ao exagero do meio acadêmico tem seu charme, mas alguns consideram ter ido longe demais. A ironia de Binet nos lembra que mesmo os gênios do pensamento podem se tornar personagens quando observados de longe, ou quem sabe, de perto demais. Mas e a tal sétima função? Existe, no fundo, uma linguagem tão poderosa que possa dominar a mente alheia?

Seis funções já bastam para dar conta do mundo, pelo menos no modelo clássico do linguista Roman Jakobson, que analisou a comunicação como um sistema estruturado. A referencial informa ("A Terra gira em torno do Sol."), a emotiva expressa sentimentos ("Estou exausto, mas feliz."), a conativa persuade ("Inscreva-se agora e não perca essa oferta!"), a fática garante que a conversa continue ("Alô, está me ouvindo?"), a metalinguística explica a própria linguagem ("'Ironia' é quando se diz o contrário do que se quer expressar."), e a poética brinca com a estética das palavras ("O tempo é um rio que nunca para de correr."). Mas e se houvesse uma que transcende tudo isso? A linguagem não apenas como veículo, mas como ferramenta de controle absoluto?

O que era uma conspiração ficcional no livro de Binet se tornou um jogo real na era digital. O treinamento de inteligências artificiais baseadas em linguagem transforma a comunicação num campo de disputas, onde a persuasão não é mais arte, mas algoritmo. Grandes empresas investem bilhões para que suas IAs entendam e antecipem nossos desejos antes mesmo de de nós os formularmos. Se existe uma sétima função, ela já não pertence a um manuscrito perdido de Barthes, mas sim aos modelos de linguagem que nos vendem, convencem e manipulam sem que percebamos. Um clique aqui, um anúncio ali, um chatbot acolá — e pronto, seguimos a trilha de um discurso que se ajusta não ao que sabemos que queremos, mas ao que poderíamos querer.


                        O termo feed, das redes sociais, vem do inglês to feed, que significa alimentar. E não é por acaso: somos nutridos com um fluxo contínuo de conteúdos que parecem feitos sob medida. Mas e se, em vez de informações, fosse comida? Se uma mão invisível (não a do mercado, mas uma real) nos alimentasse sem parar, sem que precisássemos escolher ou perceber quando deveríamos parar? Tratando-nos como a um bebe. No início, seria conveniente e até prazeroso. Mas logo o excesso nos faria mal, a mão nos afogaria em comida, nos impediria de experimentar coisas novas, de exercitar, estudar, namorar, viver. O feed digital segue essa mesma lógica – nos mantém rolando, absorvendo sem questionar; e enquanto consumimos nosso tempo para outras atividades, inclusive dormir, também é consumido. 

Nesse mar digital, não basta que sejamos influenciados pelo que consumimos — somos também condicionados a escolher o que já aceitamos como verdade. O risco para o futuro é nem percebemos o quanto estamos sendo adestrados e agrupados. Os algoritmos, projetados para maximizar engajamento, nos isolam em bolhas ideológicas, filtrando qualquer visão que desafie nossas crenças. Os grupos de zap já eram modelos de seleção natural do pensamento homogêneo: controversas ou descambam para a estupidez, ou são extintas em pouco tempo, seja pelo silêncio, pelas exclusões ou pela criação de novos grupos ainda mais alinhados deixando o maior perecer. Não que tenhamos que suportar baixaria e total maluquice dos outros, existem casos que o melhor é se afastar, mas trata-se de um retrato maior da intolerância ao diverso. O resultado? A reiteração do mesmo, a repetição de discursos que nos confortam, mas não nos questionam.

                         

No passado, uma mentira precisava de insistência para ser aceita. Hoje, basta que seja conveniente. A desinformação é contagiosa; não porque as pessoas são incapazes de verificar fatos, o que já é uma tarefa complicada no oceano de dados e narrativas disponíveis, mas porque elas preferem defender o que já acreditam, mesmo diante de provas incontestáveis. A dissonância cognitiva se apresenta em sua forma mais crua: quando a verdade entra em choque com a identidade, o cérebro escolhe preservar a identidade. É mais fácil moldar os fatos ao que já se crê do que suportar o desconforto de mudar de ideia, muitas vezes depois de bastante tempo pensando equivocadamente. Fake news não apenas distorcem a realidade, mas recriam significados, torcem palavras até que se encaixem no que já queremos ouvir.

E, antes mesmo de resolvermos esse problema, já nos deparamos com um desafio ainda maior: um mundo onde a linguagem não é apenas o meio, mas o próprio mecanismo de controle. Se antes as palavras eram armas de retórica, agora são calibradas em tempo real por máquinas que aprendem com nossos hábitos. O perigo não está só em sermos enganados, mas em nem sequer percebermos que há algo para ser questionado.

Isso nos leva a um dilema: seremos treinados por nossas próprias criações?

Se por um lado os avanços dos modelos de linguagem e inteligência artificial trazem benefícios inegáveis: acesso instantâneo a um oceano de conhecimento, personalização extrema de serviços, interações que captam nuances antes impensáveis, com sua influência indo muito além da conveniência.

Esse texto, por exemplo, talvez não ficasse tão completo sem a tecnologia moderna. Apenas em um local solicitei uma resenha do livro que havia lido fazia tempo, pesquisei a respeito dos personagens, na obra e na vida real. Alguns nem conhecia. Corrigi ortografia, gramática, cortei redundâncias e recebi sugestões para manter o texto coerente e coeso, além de lapidar as ideias que propus no esboço inicial. Escritores do passado tinham que pesquisar com muito mais dificuldade, enfrentarem a máquina de datilografar ou o carbono, realizar toda correção e polimento sozinhos, lidando de maneira heroica com seus pontos cegos e sequer podiam errar. Mas o esforço gerava benefícios em moldarem um estilo único e na fixação do conhecimento sobre o mundo, sobre a escrita e sobre si.

 No entanto, os novos tempos sempre trazem inovações sedutoras e inteligentes, que são difíceis de rejeitarmos completamente sem nos isolarmos completamente. O que não deve acontecer é a entrega da criação para a máquina sem ponderação, nem aprendizado com as possíveis sugestões incorporadas. Devemos criar rotinas pessoais rígidas para utilização da tecnologia, tanto na questão temporal, quanto na maneira de interagirmos. Acima de tudo, devemos, estar atentos para reter o controle criativo. Precisamos ser a resistência consciente a todo esse processo, que parece irreversível. Na escrita, por exemplo, sempre procuro confeccionar sozinho a versão inicial abrangendo tudo que desejo transmitir, esgotando meu alcance para aquele momento. Apenas após grande esforço utilizo a ferramenta como ela é: uma ferramenta, e não um novo cérebro.

Por falar nele, no campo psicológico, essas tecnologias podem se tornar ferramentas fantásticas para o autoconhecimento, facilitando o acesso a informação, auxiliando na organização do pensamento, e na exposição dele, na resolução de problemas, no auto conhecimento e pode até fornecer, suporte profissional e emocional em determinados casos. Imagine robôs assistentes cuidando de idosos, oferecendo companhia, monitorando sua saúde e realizando tarefas domésticas para eles e incapacitados. Ou mesmo companheiros sentimentais e profissionais, ao estilo do filme Ela, projetados para oferecer insights, organização, conforto e diálogo em um mundo onde a solidão cresce na mesma proporção que a conectividade digital. Alguns podem achar tudo isso demais, e os perigos são reais, é essa a essência desse texto, mas se utilizadas dentro de uma faixa saudável de interação, a simbiose entre humanos e máquinas pode ser muito benéfica a toda a sociedade.

Por outro lado, os perigos são igualmente vastos, e muito mais sutis. A desinformação, agora refinada por algoritmos de aprendizado e otimização sistemáticos, não apenas se espalha, mas se adapta ao perfil cognitivo de cada indivíduo, explorando suas crenças e inseguranças para torná-la mais convincente. A mentira nunca se travestiu tão bem de verdade. Já a publicidade deixou de ser apenas uma forma de expor produtos e se tornou um sistema capaz de identificar fragilidades emocionais e explorá-las cirurgicamente, vendendo não apenas mercadorias, mas desejos que antes sequer existiam. Assim, somos colocados diante ao maior risco: a linguagem, que deveria ser, antes de mais nada, uma ferramenta de expressão e construção do pensamento, agora pode se tornar uma força invisível de persuasão absoluta, moldando opiniões, manipulando comportamentos e, no limite, redefinindo a própria realidade sem que percebamos.

                     

O mais curioso é que, nesse jogo de aprendizado, não somos apenas os treinadores. Estamos também sendo treinados. Nossos hábitos são analisados, replicados e nos devolvidos de forma refinada, ajustada para nos tornar versões cada vez mais previsíveis de nós mesmos. O que deveria ser uma tecnologia para ampliar nosso horizonte acaba estreitando-o, reforçando o que já acreditamos nos alterando levemente para o que é mais conveniente nos tornarmos e nos afastando do contraditório.

Isso acontece porque nossa forma de interpretar o mundo nunca foi neutra. Somos guiados por viéses — inclinações sistemáticas que moldam nossa visão da realidade. Alguns sempre existiram: no viés cognitivo filtramos informações para confirmar nossas crenças (Exemplo: buscar apenas notícias que reforcem nossa visão política); no viés cultural tomamos como "naturais" normas e valores do nosso meio (Exemplo: julgar um comportamento como certo ou errado apenas porque é comum em nossa cultura); no viés estatístico falhas nos dados distorcem percepções (Exemplo: pesquisas enviesadas que sugerem um consenso inexistente).

Se esses viéses já influenciavam nossa compreensão do mundo, agora foram otimizados e se viram contra o homem a cada interação.

Na maneira como essa relação se auto constrói, temos constantemente que nos preocuparmos com o viés de treinamento reverso. Não basta prestarmos atenção na qualidade dos dados que alimentam as máquinas — precisamos nos perguntar como as máquinas estão nos treinando de volta. Se confiamos nelas para filtrar o que pensamos e consumimos, mas elas nos devolvem versões refinadas do que já sabem que desejamos e é naturalmente mais fácil aceitar, estamos aprendendo com espelhos manipulados. Afinal, quem está moldando quem nessa relação.

                         

Se alguns dizem que faltam funções na classificação clássica de Jakobson, das funções de linguagem, talvez seja porque ele viveu numa época sem algoritmos escrevendo histórias ou IAs programando discursos. Cada vez mais, algumas outras funções ganham destaque: A função performativa, que não apenas informa, mas executa ações concretas, já era implícita nas fórmulas jurídicas e nos comandos rituais. Agora, ela se estende aos comandos digitais: "Alexa, acenda a luz." A função lúdica, outrora um simples jogo de palavras, tornou-se central nos memes e na comunicação online, onde um bom trocadilho pode valer mais que um argumento lógico. E a algorítmica? Será que um código é um discurso ou apenas um meio de instrução? Se dizemos print("Hello, world!"), estamos programando ou apenas conversando com uma máquina em sua própria língua?

Na era digital, a função mais importante promete ser a identitária. Não apenas a linguagem como marca de pertencimento a um grupo, mas como um filtro invisível que molda nossa percepção do mundo. Antes, as palavras eram usadas para expressar o que somos; agora, são usadas para nos transformar no que se espera que sejamos. O que lemos, ouvimos e assistimos é cuidadosamente mediado por algoritmos que criam câmaras de eco, onde a realidade se ajusta a nossas crenças e desejos. Manter nossa atenção já é lucrativo ao sistema. Estamos sendo sugados pelo abismo digital, diria Nietzsche. Cada interação nos torna menos propensos ao contraditório e mais vulneráveis ao previsível. A linguagem já não é apenas sobre comunicação, mas sobre quem nos tornamos ao usá-la.

                     

Antes podíamos dizer "você é o que você espalha e não o que você junta", com o sentido de nos doarmos e influenciarmos bem o mundo ao nosso redor, sem nos preocuparmos em acumular bens materiais, hoje essa máxima assume um novo significado — e não necessariamente um libertador ou altruísta.

Podem escolher a próxima: A boca que fala veneno respira o mesmo ar; ou, quem semeia vento, colhe tempestade. O que emitimos não desaparece no fluxo da comunicação, mas é coletado, analisado, dissecado e devolvido a nós. Agora com o potencial de ser transformado numa ferramenta de controle individualizada, instruída com nossos interesses e buscas.

Cada pensamento expresso é um dado, cada interação, uma variável num cálculo estatístico invisível. Somos monitorados, catalogados, estudados, medidos em nossos comportamentos e em nossas brechas emocionais e cognitivas. Cada palavra compartilhada não apenas ecoa de volta, mas retorna modificada, ajustada para que nos encaixemos em um perfil mais influenciável, ainda mais previsível. O processo é contínuo e massacrante. Se nós adultos estamos a perigo, imaginem as crianças e adolescentes, mais propensos a impulsos e a seguir sem questionar. Alguns incentivados pelos pais a interação digital para darem sossego. O que um dia foi liberdade de expressão se tornou um sistema de retroalimentação silenciosa, onde nossos próprios discursos nos moldam, mas não mais exatamente sob nossa vontade. 

                             

A parede digital não reflete quem somos, mas quem devemos nos tornar para sermos persuadidos. Nossa identidade, antes um processo de construção íntimo gradual e humano, agora se refaz como produto otimizado, a ponto de com as sucessivas transformações limitarem nosso verdadeiro potencial. No fim, aquilo que seremos capazes de juntar e aceitar já terá sido calculado, embalado e vendido, encaixado perfeitamente na lógica de um sistema que nos conhece melhor do que nós mesmos e que enfrenta resistência dos poucos que o desafiam com práticas para manter o que há de mais humano em nós.

A busca pelo poder absoluto da linguagem não pertence mais aos acadêmicos dos cafés parisienses, mas aos engenheiros de dados que treinam as máquinas para falar melhor do que nós mesmos. Barthes pode ter morrido em 1980, mas sua obsessão pela linguagem nunca foi tão viva — nem tão perigosa. O problema não é encontrar a sétima função. O problema é o que faremos com ela agora que a encontramos.


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