Amar é...

 


O amor é um sentimento tão complexo que até definir suas nuances parece impossível. Vinicius de Moraes, em sua busca por capturar essa essência, recorre à própria palavra para explicar o inexplicável.

                         “Por céus e mares eu andei
Vi um poeta e vi um rei
                     Na esperança de saber o que é o amor
Ninguém sabia me dizer
E eu já queria até morrer
Quando um velhinho com uma flor assim falou
O amor é o carinho
É o espinho que não se vê em cada flor
É a vida quando
Chega sangrando
                             Aberta em pétalas de amor”


                            Originalmente, o termo latino se aplicava à afeição, à preocupação e ao desejo por alguém. Há ainda uma possível raiz indo-europeia na palavra “amma”, remetendo à ideia de mãe como símbolo do amor incondicional. 

Muitos artistas, filósofos e poetas já tentaram capturar a essência do amor, quase sempre se prendendo à sua dimensão romântica — e, ainda assim, tocando fundo na alma de quem já viveu essa experiência. Afinal, quem nunca perdeu o sono ou até emagreceu por alguém que não saía da cabeça? Nessas horas, até as frases mais simples ou clichês ressoam como verdades indiscutíveis. Basta lembrarmos do sucesso de Zezé de Camargo e Luciano com "É o amor, que mexe com minha cabeça e me deixa assim..."

O mesmo vale para filmes como Nove e Meia Semanas de amorTitanicAs Pontes de Madison, ou até a animação A Bela e a Fera. Em Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, o desespero é tão profundo que os amantes tentam apagar memórias específicas do outro, mas elas acabam se recriando em esconderijos da mente para sobreviver. Já em Romeu e Julieta, o amor é puro, avassalador e trágico.

  Lembro que, na infância, os álbuns de figurinha dos meninos geralmente envolviam super-heróis ou futebol e estes pipocavam mais em épocas de Copa do Mundo. Mas, entre esses intervalos, havia um que só as meninas completavam: Amar é.... Cada figurinha mostrava uma situação diferente de amor, iniciada com essa frase e ilustrando uma cena cômica ou adorável. Eu não conseguia deixar de sentir uma pontinha de inveja, ainda mais nos períodos em que apenas elas estavam completando o álbum, e a empolgação beirava a insanidade. Talvez por isso essa memória tenha permanecido tão bem gravada.

Se existisse uma versão adulta desse álbum, talvez ele retratasse, em cada figurinha, uma espécie de grande ironia do destino. Para uns, amar é quase um sofrimento inevitável — aquele aperto no peito que nos rouba o sono e, ao mesmo tempo, nos faz escrever poesia. Para outros, amar significa deixar que nossas raízes cresçam em torno de alguém, mesmo que isso exponha nossa vulnerabilidade. Afinal, fugir do amor também causa dor. Se não ama, dói; se ama, dói. Acabamos com um diploma em desconforto, mas é esse desconforto que dá a chance de sentirmos sabor na vida.

Isso não quer dizer que o amor seja sempre trágico, mas definitivamente não é simples. Cada relação amorosa parece envolver quatro participantes: os dois em carne e osso e as duas versões idealizadas que cada um tem na cabeça.  Algumas vezes, no entanto, basta um único olhar para nos sentirmos inteiros. O coração, como um velho estojo de segredos, arquiva um encontro casual e o transforma numa bússola afetiva.

Talvez a grande sacada seja entender que amar não se limita à paixão ou ao encantamento inicial — embora seja nesse frenesi que muitos descobrem o gosto de estar vivos. Amar também é a arte de nos reinventarmos, acolhendo os desvios do outro, mesmo quando nos deixam perdidos. Aceitar a imperfeição — tanto a nossa quanto a do outro — faz parte do processo. Quando amamos pra valer, até as falhas da pessoa amada nos encantam — às vezes, mais do que mil acertos.

Há quem afirme que nosso estado normal de humanidade deveria ser o que sentimos ao nos apaixonar: aquela leveza, aquela sensação de 'posso conquistar o mundo'. Talvez, se o amor fosse constante, fôssemos versões melhores de nós mesmos. Mas quem suportaria viver nesse estado de excitação contínua, sem pausas para respirar? Precisamos de picos e vales, planícies e vertigens — porque é no contraste entre a euforia e o repouso que compreendemos nossas próprias limitações e redefinimos nossos desejos e buscas." Nessa variação de amplitudes somos expostos a nossa própria fragilidade e ela é detectada e muitas vezes escancarada pelo outro na intimidade. Como se, diante de um espelho, víssemos com mais clareza aquilo que guardamos no fundo da alma — desejos, inseguranças e medos que só o amor nos obriga a encarar. Pontos cegos não resistem a duas pessoas complementares. O amor é um mergulho em recantos de nós que desconhecíamos. E a melhor parte, ele não necessita de retribuição para existir, pois brota no íntimo de quem ama e ilumina o ser amado.

Amar é um ato de liberdade, mas também de exposição. Não existem garantias, férias ou manuais de instrução. Às vezes, é preciso coragem para ir embora; em outras, ainda mais coragem para ficar. Nesse turbilhão, lidamos com a intensidade do sentimento, que, se for grande demais, quase nos sufoca e, se for contido, perde o encanto. 

Ainda assim, não conheço nada mais valioso do que amar. Quem ama descobre em si uma força inesperada: a capacidade de imaginar um futuro compartilhado, onde caibam dois (ou mais) corações. E, mesmo quando a presença física se dissolve, o amor continua existindo dentro de nós. Feito uma canção tocando baixinho, ele conforta e remete a tudo o que nos fez vibrar, sofrer e renascer. Mas se ele nos dá esse senso de continuidade, sua ausência pode fazer o contrário. A solidão, quando prolongada, parece deformar o espaço-tempo. Como canta Alceu Valença, 'ela é fera, devora, é prima-irmã do tempo'. E, de fato, quando nos falta amor — seja na ausência de um afeto, de uma presença ou até de uma esperança — os relógios passam a caminhar mais lentos. O tempo deixa de ser medida e se torna peso. O descompasso da solidão é traiçoeiro: ela nos isola, mas, ao mesmo tempo, nos acompanha por toda parte. Amplifica nossos silêncios e intensifica memórias, obrigando-nos a encarar o que tentamos silenciar no calor do amor.

De um jeito ou de outro, amar nos aproxima daquilo que deveríamos ser: humanos em nossa mais poderosa vulnerabilidade. Ninguém promete um percurso livre de tropeços — talvez amar seja, exatamente, concordar em tropeçar sem reclamar. Quem se recusa a mergulhar nessa experiência acaba sofrendo por outro motivo, pois viver sem amor é como atravessar um deserto existencial. Por isso buscamos o amor com tanta ânsia: porque o oposto dele não é a indiferença, mas a dilatação do tempo e da falta. Alguns poucos conseguem navegar bem sozinhos, mas, para a maioria, tudo ao redor perde um pouco do contorno, como se estivéssemos vivendo num negativo fotográfico da vida. Vinicius de Moraes nos lembra do perigo maior de tentar evitar a dor do amor na letra de Testamento:

“Você que não gosta de gostar

Pra não sofrer, não sorrir e não chorar

Você vai ver um dia

Em que fria você vai entrar!

Por cima uma laje

Embaixo a escuridão

É fogo, irmão! É fogo, irmão”

Amar é: abraçar a vida com o ímpeto de quem partilha cada batida do coração, cada riso solto e cada lágrima contida. 

Definições e teorias não faltam, mas todos, em determinado instante, reconhecemos o lampejo inconfundível que surge ao amar. É como se a alma se abrisse, indicando um caminho que, por mais incerto, nos parece profundamente certo. Ou, para simplificar: amar é tão imprevisível que talvez seja exatamente isso que nos salva.

Nem sempre, no entanto, o amor nos conduz ao desfecho ideal — ou sequer ao melhor caminho. Muitas pessoas passam tempo demais presas a relações que, em vez de impulsioná-las, acabam travando seu crescimento. Apesar da paciência e dedicação que destacamos antes, há situações em que precisamos lembrar do famoso “que seja eterno enquanto dure”. Às vezes, é preciso deixar o outro seguir sua vida, e é aí que surgem diferentes estratégias para lidar com a dissolução. 

Alguns preferem deixar o tempo curar as feridas; outros tentam abreviar o esquecimento. Para tirar alguém da cabeça, sobretudo quando o sentimento se torna impossível ou indesejável, muitas vezes é preciso um corte total. Evitar certos lugares, mudar a rotina ou até de cidade pode dar espaço ao coração para se reorganizar. No começo, dói, mas depois permite que a vida volte a respirar. Cortar laços digitais também se pode ser necessário por um tempo.

Outra estratégia, recomendada por um amigo, é se atirar em novos amores assim que a oportunidade surgir. Uma hora sem nem percebermos a transição, a dor já não incomoda tanto. Ele costumava dizer: "O antídoto para veneno de cobra é elaborado com veneno de cobra". Ou, para lembrar novamente do poeta, "amor só se resolve na manhã de um novo amor". (trecho da música Canto de Ossanha)

Para Vinicius, no entanto, é preciso antes atravessar completamente a dor. Mas há casos e casos. Em certos momentos, tanto a vida quanto a dignidade clamam por uma resolução que nos permita seguir adiante. Então, diante do paradoxo, aceito o conselho do amigo, mas com atenção ao que o poeta diz. Porque, afinal, se a solidão é prima-irmã do tempo, o amor é primo-irmão do caos. Não por acaso, um certo filósofo grego concluiu que o amor nasce na atração física, mas pode ascender a uma forma quase divina de contemplação. Em termos práticos: o amor nos tira do chão e oferece um vislumbre de algo maior — mas também pode virar aquela obsessão juvenil de analisar cada resposta do ser amado, como se fosse um enigma digno dos deuses.

Se o amor é essa neblina fascinante, talvez a nuvem de possibilidades mais complexa que nos rodeia, já houve quem afirmasse que tudo não passa de desejo disfarçado. E outros, ainda mais pessimistas, que nos apaixonamos para perpetuar a espécie — um golpe baixo da natureza. Sinceramente, não os culpo, nos momentos mais cinzas, chego a concordar. Quantas vezes nos comportamos como se fôssemos enfeitiçados por um perfume ou por um timbre de voz irresistível? Curioso também como, logo após os momentos de maior intensidade, o desejo pode dar lugar a uma repentina necessidade de espaço. O amor, em sua complexidade, dança entre a entrega e a autonomia, e esse jogo de distâncias às vezes confunde até os mais experientes.

Se os filósofos duvidam, por outro lado, as religiões incitam à reverência: falam do amor incondicional, da compaixão que se estende até a quem liga o som no último volume às cinco da manhã de domingo. Um teste de tolerância e paciência, sem dúvida, mas talvez também um lembrete de que amar é transcender o pequeno “eu, você e o gato” e envolver todo mundo num abraço imaginário. É uma aspiração universal que, honestamente, nem sempre conseguimos sustentar, mas que nos faz almejar ser melhores.

Existe um lado nobre nessa montanha-russa de sentimentos. Amar pode ser uma disciplina, exigindo prática, conhecimento e responsabilidade. E, olhando para figuras como Gandhi ou Madre Teresa, percebemos que o amor também pode ser revolucionário, unindo corações a favor de um bem maior. Mas talvez estejamos entrando no campo da compaixão.

No entanto, o amor pode assumir várias facetas. Existe o romântico, cheio de bilhetes e pores do sol; o universal como descrito acima, o fraternal, que envolve família, amigos, e gente que mal conhecemos mas já estimamos; o maternal/paternal/filial, esse elo invisível unindo gerações; o amor entre espécies,  que apenas quem ama pets entende bem; e o amor-próprio, tantas vezes negligenciado, mas essencial à nossa saúde emocional.

E eu, o que acho? Depois de tantas teorias, continuo vendo no amor a mais bela das loucuras humanas. Ele inspira poemas, canções que quebram corações e, às vezes, aquele encontro de olhares que faz o tempo parar. Amar é correr riscos. É gargalhar de quantas bobagens cometemos por alguém. Talvez seja a única forma de viver a vida com a intensidade que ela merece. Se não podemos viver em êxtase emocional o tempo todo, ao menos experimentar esse frisson é um prazer (e um pânico) que nos leva ao território do inexplicável. Só nos resta falar em fragmentos, pois o todo nos escapa. Precisamos assim de inúmeras figurinhas, cada uma com o seu "Amar é"; para ao menos tentarmos nos aproximar da compreensão de algo tão intenso, delicado, intangível e sublime!! 

Nenhuma palavra realmente esgota esse mistério. Talvez precisemos de um toque de ceticismo para manter os pés no chão, mas, quando o amor se apresenta, o primeiro gesto é agradecer — mesmo que não seja como idealizamos. Pensar que as borboletas na barriga são apenas a parte visível de um vasto iceberg de sensações assusta, mas também nos convida a mergulhar mais fundo. O amor nos transforma e revela tanto o outro quanto nós mesmos — e, quanto mais avançamos nesse mergulho, maior o frio na barriga. A ousadia torna o amor a grande aposta na vida.

Amar é: caminhar na linha tênue entre a esperança e a realidade, sem jamais perder o compasso.

Comentários

  1. Vinicius sabia falar e sentir o amor. Em seus 9 casamentos sempre amou muito.

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  2. Sim, aproveitou muito e com sua sensibilidade retratou bem esse sentimento através da arte;

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