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Superstição é aquela coisa que todo mundo finge que não acredita, mas
que, na hora do aperto, dá uma espiadinha de canto de olho. A ciência pode até nos dizer que não há fundamento algum em bater na madeira
três vezes, evitar passar debaixo de escadas ou temer um gato preto, mas, em
doses saudáveis, seguir uma tradição popular ou confiar em um pressentimento
pode nos ajudar a resolver impasses, evitar caminhos incertos e, no fim, nos
dar mais confiança para transitar pela vida.
A verdade é que, como seres finitos e atirados ao mundo sem manual de
instruções, vamos tateando a existência com as ferramentas que temos. Algumas
delas são absolutamente racionais – como a matemática, a lógica e a observação
empírica. Outras são mais místicas. São sinais, pequenas coincidências que, na
nossa cabeça, vão costurando um significado particular para as situações.
Nosso cérebro, inquieto, tece conexões entre eventos, mesmo quando
elas não existem. Um guerreiro ancestral vencia a caça depois de esfregar certa
pedra no peito? Melhor não arriscar sair sem ela. Um xamã murmurava palavras
antes da chuva cair? Então que murmurasse sempre. A superstição nasce desse
instinto primitivo de domar o caos, de construir pequenas ilhas de
previsibilidade em um mar de incerteza.
A natureza emerge do caos e o acaso, com seu jogo estatístico de
probabilidades, é a engrenagem básica das mutações, mas é também a plataforma
caótica na qual emerge um princípio organizador. Estamos no meio do caminho,
ainda desvendando as leis universais, e, dentro desse mistério, há um certo
grau de liberdade na forma como interpretamos e lidamos com as informações que
temos a dispor.
De que adianta me explicarem mil vezes que a probabilidade de um Royal
Straight Flush é a mesma para qualquer naipe, se, na minha história pessoal,
dos nove que fiz na vida, oito foram de copas? Será que o entusiasmo ao filar
as cartas e a confiança de que a última delas pode fechar a maior sequência
naipada não se alteram por causa do meu histórico? Será que meu coração, embora
compreenda como as estatísticas envolvidas operam, não bate mais forte quando
estou na tentativa de outros corações?
Esse jeito de pensar pode não ter respaldo científico, mas também não
é só bobagem – é uma das facetas da nossa humanidade. Afinal, quem nunca sentiu
um pressentimento inexplicável que, depois, se provou certeiro? E se aquele
velho palpite silencioso for, na verdade, um jeito refinado da nossa intuição
de falar conosco? Uma maneira do nosso cérebro identificar conexões sutis que
seriam difíceis demais através da lógica pura.
Cada um tem seu próprio método para navegar. Há quem se guie pelo céu
e suas estrelas, outros pelos números que aparecem com frequência, os que
decidem coisas pelo voo aleatório de uma borboleta e os completamente céticos.
Desde que o método eleito não atrapalhe os outros, nem impeça uma boa reflexão,
não há mal nenhum em ter uma bússola secreta para decisões mais difíceis. No
fundo, um certo nível de superstição pode até ser útil – se não para prever o
futuro, ao menos para nos dar aquela sensação de controle sobre a
imprevisibilidade da vida.
Se a vida é um tabuleiro imprevisível, não faltam jogadores que
carregam suas próprias peças da sorte (ou amuletos). Há quem confie na clássica
figa para espantar maus espíritos, outros preferem um trevo de quatro folhas no
bolso para garantir um dia próspero. O olho de Osíris protege contra inveja, o
pé de coelho traz fortuna (infelizmente, não para o próprio coelho), e tem quem
pendure sal grosso na porta ou amarre fitinhas no pulso para fazer pedidos.
Cada cultura tem seu próprio kit de proteção contra o desconhecido – uns
carregam um patuá, outros confiam apenas em um mantra silencioso, mas, no fim,
todos querem o mesmo: um pouco de sorte e a sensação de que podem dobrar o
acaso a seu favor.
Duas das pessoas que mais amo escolheram 13 como o número da sorte. Já
um dos meus melhores amigos, que está sem dúvida mais pro lado científico
racional do que para o místico, jnão conseguia deixar o botão do volume do rádio
em número ímpar. Sempre o colocava no par e se estava no ímpar mudava. Ele
nunca me explicou o porquê, e talvez nem precisasse. Fico imaginando que talvez
seja porque um número par produz a sensação de equilíbrio, de balanço, e em
termos musicais isso está em conformidade com o contexto. Mas vai saber, pode
ser algo completamente diferente e que faça sentido apenas para ele.
A verdade é que vivemos cercados por sinais – alguns escritos nas
estrelas, outros impressos em nosso próprio instinto. Nossos presságios
pessoais podem parecer irracionais para os outros, mas, para nós, fazem todo
sentido. Afinal, quem nunca confiou cegamente em um palpite inexplicável e se
deu bem? Às vezes acertamos por algum mérito oculto de nossas mentes, em outras
trata-se apenas de uma coincidência – mas em muitas também erramos
espetacularmente e devemos nos lembrar disso. No pôquer (modalidade Texas), por
exemplo, há quem jure que par de valetes, uma das mãos mais fortes, é um
convite ao desastre, enquanto abraça com entusiasmo um 7 e 2, a combinação mais
fraca, convencido de que aquele é seu amuleto secreto – até perder todas suas
fichas. A vida é assim: um jogo em que cada um lê as cartas à sua maneira,
principalmente quando uma escolha racional é difícil, mas devemos ser
conscientes de que, a longo prazo, contrariar a lógica pode sair bem caro.
Em O Homem e Seus Símbolos, Carl Jung nos lembra que os símbolos são
mais do que simples figuras ou tradições herdadas — eles são expressões vivas
do inconsciente, moldando a forma como interpretamos o mundo ao nosso redor.
Mas há um detalhe essencial: essas imagens não devem ser tomadas como verdades
absolutas, pois seus significados mudam conforme a experiência de cada um.
Quando tentamos encaixá-los em explicações rígidas, corremos o risco de perder
sua riqueza e profundidade, transformando algo dinâmico em dogma. E dogmas,
como sabemos, costumam aprisionar mais do que libertar.
Jung alerta para esse perigo: quando um símbolo perde sua força
intuitiva e se torna uma crença inflexível, ele pode nos afastar da realidade,
fazendo com que enxerguemos apenas aquilo que queremos ver. (imagine o tamanho
do problema no mundo atual onde nossas preferências e crenças são reforçadas
por algoritmos) Em vez disso, ele propõe um caminho mais sábio — explorar os
símbolos com consciência, entendê-los dentro do nosso próprio percurso e
permitir que nos guiem, sem nos cegar. Essa jornada de diálogo entre razão e
intuição, entre consciente e inconsciente, é o que ele chama de individuação:
um processo de descoberta pessoal que nos torna, ao mesmo tempo, mais inteiros
e mais livres.
É um grande problema quando a superstição deixa de ser um recurso
subjetivo e se torna um dogma rígido. O obscurantismo exagerado já foi
responsável por sustentar ideias e crenças que só fizeram mal à humanidade.
Basta lembrar de quando se acreditava que doenças eram castigos divinos ou que
determinados grupos carregavam maldições. Ou na época em que mulheres que
desafiavam a rigidez de pensamento e comportamento da época ou simplesmente
demonstravam boa intuição eram consideradas bruxas e queimadas em fogueiras.
A mesma cegueira que um dia queimou mulheres em fogueiras ainda se
manifesta de outras formas. Curiosamente, muitos que condenam os rituais
alheios não hesitam em cruzar os dedos, acender uma vela para um santo ou
evitar abrir guarda-chuva dentro de casa. O sagrado, afinal, assume diferentes
formas para cada um – e respeitar isso é um dos primeiros passos para sair da
escuridão da ignorância.
Ainda hoje matam gatos pretos nas ruas por acreditarem ser um sinal de
azar. Sorte que há quem os recolha e cuide. Assim demonstram para os ignorantes
que o verdadeiro azar é viver sem compaixão, decidindo suas ações por
infantilidade temperada com boa dose de maldade. É fácil perceber que o excesso
de crença cega pode ser tão prejudicial quanto a ausência total de intuição.
Para finalizar esse texto, não poderia deixar de tocar no charme da
visão artística: enquanto alguns tremem de medo diante do número 666, por
associações religiosas e mitológicas, Mario Quintana transformou esse número em
um dos poemas mais interessantes da língua portuguesa. Porque, no fim das
contas, os símbolos refletem o que projetamos neles – e se até o temido 666
pode se transformar em poesia, talvez valha mais a pena reinterpretar os medos
do que fugir ou barbarizar por eles.
666
Mario Quintana
Seiscentos e Sessenta e Seis
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo...
Quando se vê, já é 6ª feira...
Quando se vê, passaram 60 anos!
Agora, é tarde demais para ser reprovado...
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre em frente...
e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.
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