666

Superstição é aquela coisa que todo mundo finge que não acredita, mas que, na hora do aperto, dá uma espiadinha de canto de olho. A ciência pode até nos dizer que não há fundamento algum em bater na madeira três vezes, evitar passar debaixo de escadas ou temer um gato preto, mas, em doses saudáveis, seguir uma tradição popular ou confiar em um pressentimento pode nos ajudar a resolver impasses, evitar caminhos incertos e, no fim, nos dar mais confiança para transitar pela vida.

A verdade é que, como seres finitos e atirados ao mundo sem manual de instruções, vamos tateando a existência com as ferramentas que temos. Algumas delas são absolutamente racionais – como a matemática, a lógica e a observação empírica. Outras são mais místicas. São sinais, pequenas coincidências que, na nossa cabeça, vão costurando um significado particular para as situações.

Nosso cérebro, inquieto, tece conexões entre eventos, mesmo quando elas não existem. Um guerreiro ancestral vencia a caça depois de esfregar certa pedra no peito? Melhor não arriscar sair sem ela. Um xamã murmurava palavras antes da chuva cair? Então que murmurasse sempre. A superstição nasce desse instinto primitivo de domar o caos, de construir pequenas ilhas de previsibilidade em um mar de incerteza.
A natureza emerge do caos e o acaso, com seu jogo estatístico de probabilidades, é a engrenagem básica das mutações, mas é também a plataforma caótica na qual emerge um princípio organizador. Estamos no meio do caminho, ainda desvendando as leis universais, e, dentro desse mistério, há um certo grau de liberdade na forma como interpretamos e lidamos com as informações que temos a dispor.

De que adianta me explicarem mil vezes que a probabilidade de um Royal Straight Flush é a mesma para qualquer naipe, se, na minha história pessoal, dos nove que fiz na vida, oito foram de copas? Será que o entusiasmo ao filar as cartas e a confiança de que a última delas pode fechar a maior sequência naipada não se alteram por causa do meu histórico? Será que meu coração, embora compreenda como as estatísticas envolvidas operam, não bate mais forte quando estou na tentativa de outros corações?

Esse jeito de pensar pode não ter respaldo científico, mas também não é só bobagem – é uma das facetas da nossa humanidade. Afinal, quem nunca sentiu um pressentimento inexplicável que, depois, se provou certeiro? E se aquele velho palpite silencioso for, na verdade, um jeito refinado da nossa intuição de falar conosco? Uma maneira do nosso cérebro identificar conexões sutis que seriam difíceis demais através da lógica pura.

Cada um tem seu próprio método para navegar. Há quem se guie pelo céu e suas estrelas, outros pelos números que aparecem com frequência, os que decidem coisas pelo voo aleatório de uma borboleta e os completamente céticos. Desde que o método eleito não atrapalhe os outros, nem impeça uma boa reflexão, não há mal nenhum em ter uma bússola secreta para decisões mais difíceis. No fundo, um certo nível de superstição pode até ser útil – se não para prever o futuro, ao menos para nos dar aquela sensação de controle sobre a imprevisibilidade da vida.

Se a vida é um tabuleiro imprevisível, não faltam jogadores que carregam suas próprias peças da sorte (ou amuletos). Há quem confie na clássica figa para espantar maus espíritos, outros preferem um trevo de quatro folhas no bolso para garantir um dia próspero. O olho de Osíris protege contra inveja, o pé de coelho traz fortuna (infelizmente, não para o próprio coelho), e tem quem pendure sal grosso na porta ou amarre fitinhas no pulso para fazer pedidos. Cada cultura tem seu próprio kit de proteção contra o desconhecido – uns carregam um patuá, outros confiam apenas em um mantra silencioso, mas, no fim, todos querem o mesmo: um pouco de sorte e a sensação de que podem dobrar o acaso a seu favor.

                     

Duas das pessoas que mais amo escolheram 13 como o número da sorte. Já um dos meus melhores amigos, que está sem dúvida mais pro lado científico racional do que para o místico, jnão conseguia deixar o botão do volume do rádio em número ímpar. Sempre o colocava no par e se estava no ímpar mudava. Ele nunca me explicou o porquê, e talvez nem precisasse. Fico imaginando que talvez seja porque um número par produz a sensação de equilíbrio, de balanço, e em termos musicais isso está em conformidade com o contexto. Mas vai saber, pode ser algo completamente diferente e que faça sentido apenas para ele.

A verdade é que vivemos cercados por sinais – alguns escritos nas estrelas, outros impressos em nosso próprio instinto. Nossos presságios pessoais podem parecer irracionais para os outros, mas, para nós, fazem todo sentido. Afinal, quem nunca confiou cegamente em um palpite inexplicável e se deu bem? Às vezes acertamos por algum mérito oculto de nossas mentes, em outras trata-se apenas de uma coincidência – mas em muitas também erramos espetacularmente e devemos nos lembrar disso. No pôquer (modalidade Texas), por exemplo, há quem jure que par de valetes, uma das mãos mais fortes, é um convite ao desastre, enquanto abraça com entusiasmo um 7 e 2, a combinação mais fraca, convencido de que aquele é seu amuleto secreto – até perder todas suas fichas. A vida é assim: um jogo em que cada um lê as cartas à sua maneira, principalmente quando uma escolha racional é difícil, mas devemos ser conscientes de que, a longo prazo, contrariar a lógica pode sair bem caro.

                              

Em O Homem e Seus Símbolos, Carl Jung nos lembra que os símbolos são mais do que simples figuras ou tradições herdadas — eles são expressões vivas do inconsciente, moldando a forma como interpretamos o mundo ao nosso redor. Mas há um detalhe essencial: essas imagens não devem ser tomadas como verdades absolutas, pois seus significados mudam conforme a experiência de cada um. Quando tentamos encaixá-los em explicações rígidas, corremos o risco de perder sua riqueza e profundidade, transformando algo dinâmico em dogma. E dogmas, como sabemos, costumam aprisionar mais do que libertar.

Jung alerta para esse perigo: quando um símbolo perde sua força intuitiva e se torna uma crença inflexível, ele pode nos afastar da realidade, fazendo com que enxerguemos apenas aquilo que queremos ver. (imagine o tamanho do problema no mundo atual onde nossas preferências e crenças são reforçadas por algoritmos) Em vez disso, ele propõe um caminho mais sábio — explorar os símbolos com consciência, entendê-los dentro do nosso próprio percurso e permitir que nos guiem, sem nos cegar. Essa jornada de diálogo entre razão e intuição, entre consciente e inconsciente, é o que ele chama de individuação: um processo de descoberta pessoal que nos torna, ao mesmo tempo, mais inteiros e mais livres.

É um grande problema quando a superstição deixa de ser um recurso subjetivo e se torna um dogma rígido. O obscurantismo exagerado já foi responsável por sustentar ideias e crenças que só fizeram mal à humanidade. Basta lembrar de quando se acreditava que doenças eram castigos divinos ou que determinados grupos carregavam maldições. Ou na época em que mulheres que desafiavam a rigidez de pensamento e comportamento da época ou simplesmente demonstravam boa intuição eram consideradas bruxas e queimadas em fogueiras.

                 

A mesma cegueira que um dia queimou mulheres em fogueiras ainda se manifesta de outras formas. Curiosamente, muitos que condenam os rituais alheios não hesitam em cruzar os dedos, acender uma vela para um santo ou evitar abrir guarda-chuva dentro de casa. O sagrado, afinal, assume diferentes formas para cada um – e respeitar isso é um dos primeiros passos para sair da escuridão da ignorância.

                     

Ainda hoje matam gatos pretos nas ruas por acreditarem ser um sinal de azar. Sorte que há quem os recolha e cuide. Assim demonstram para os ignorantes que o verdadeiro azar é viver sem compaixão, decidindo suas ações por infantilidade temperada com boa dose de maldade. É fácil perceber que o excesso de crença cega pode ser tão prejudicial quanto a ausência total de intuição.

Para finalizar esse texto, não poderia deixar de tocar no charme da visão artística: enquanto alguns tremem de medo diante do número 666, por associações religiosas e mitológicas, Mario Quintana transformou esse número em um dos poemas mais interessantes da língua portuguesa. Porque, no fim das contas, os símbolos refletem o que projetamos neles – e se até o temido 666 pode se transformar em poesia, talvez valha mais a pena reinterpretar os medos do que fugir ou barbarizar por eles.

             666

    Mario Quintana

      Seiscentos e Sessenta e Seis

 A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.

Quando se vê, já são 6 horas: há tempo...

Quando se vê, já é 6ª feira...

Quando se vê, passaram 60 anos!

Agora, é tarde demais para ser reprovado...

E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,

eu nem olhava o relógio

seguia sempre em frente...

e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.


 


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