O pacto e as fendas !!
Grande Sertão Veredas é um livro que se lê com o corpo todo. Não
basta os olhos percorrerem as palavras; é preciso deixar que a prosa de
Guimarães Rosa desloque a respiração, desarrume certezas, infiltre-se pelos
sentidos.
A princípio, parece um monólogo—um sertanejo contando causos—mas logo se
revela um redemoinho filosófico, um abismo de perguntas e constatações onde fé e dúvida,
guerra e amizade, amor e pacto se entrelaçam sem promessas de resposta.
O sertão aqui não é apenas geografia. Não se resume ao cerrado, ao rio
seco ou às veredas que serpenteiam pelo meio da paisagem da região central do
país. Ele é metáfora, palco onde se encenam os dilemas humanos em estado bruto.
Riobaldo, o jagunço que narra sua própria travessia, oscila entre homem comum e
filósofo sem livros. Alguém que a vida e as experiências maturaram bem e que,
em sua jornada por diferentes idades, comportamentos e posições sociais, nos
faz acompanhar não apenas a formação de um indivíduo, mas de um povo. Embora o
romance seja regionalista, sua essência é universal. Riobaldo pergunta,
argumenta, desconfia e, enquanto fala, dissolve as fronteiras entre real e
imaginário. Deus existe? E o diabo? Pode-se pactuar com o destino? O que faz um
homem virar chefe? O que faz um homem se apaixonar por outro? Perguntas que
brotam do chão rachado do sertão, mas ecoando além
do tempo e da terra.
Diadorim é a pura superposição de estados: para Riobaldo, sua identidade oscilava entre possibilidades, como uma partícula antes da medição. Apenas após derrotar o chefe do bando inimigo em sua corajosa morte em batalha, quando seu corpo foi em fim observado, a verdade se cristalizou. Antes permanecia em uma espécie de limbo interpretativo, moldado mais pela percepção à distância do que por uma realidade objetiva.
O sacrifício derradeiro é a verdade que se revela apenas no fim.
Como na canção dos Titãs:
E se eles querem meu corpo
Só se eu estiver morto, só assim
Pois se eles querem meu sangue
Verão o meu sangue só no fim
( trecho da música Querem meu sangue )
Seguindo os passos de Fausto de Goethe, mas com originalidade
ímpar, Grande Sertão Veredas se estrutura em torno de um pacto duvidoso:
Riobaldo acredita ter vendido a alma ao diabo para se tornar poderoso. A noite
escura, a solidão e as coincidências significativas—onde o medo, o impulso por coragem e a ambição
turvam a mente, fizeram com que ele nunca tivesse certeza se o pacto realmente
acontecera. Mas isso não impediu que o futuro da história do sertão fosse drasticamente alterado em consequência das experiências psicológicas naquela noite. A dúvida, esse vácuo
entre crença e descrença, molda sua jornada a partir dali mais do que qualquer contrato
assinado em sangue. O invisível se impõe ao visível, e o que não pode ser
provado influencia o que se torna real. A metafísica é experimentada aqui como
um efeito colateral das próprias possibilidades interferindo umas nas
outras e consigo mesmas.
No experimento da fenda dupla, um elétron lançado contra uma barreira com duas aberturas pode atravessar ambas ao mesmo tempo—mas, segundo a interpretação mais aceita, apenas se não for observado. Como uma onda de possibilidades, ele se espalha, interfere consigo mesmo e produz um padrão de interferência. No momento em que é medido, porém, a superposição se desfaz: o elétron colapsa em um único estado, e o padrão ondulatório desaparece. Como se a realidade se ajustasse à presença de um observador (da medição). Frustrado com o paradoxo, Schrödinger imaginou o experimento do gato vivo e morto para demonstrar que, embora os cálculos utilizando sua equação fossem amplamente comprovados, a lógica por trás de tudo permanecia incompreensível para os o modo de pensar humano.
Mas o que a mecânica quântica tem a ver com Grande Sertão: Veredas? talvez mais do que imaginem.
Riobaldo é o elétron atravessando as fendas do tempo, sem jamais saber por qual delas passou. O pacto — talvez inexistente — molda sua trajetória como uma verdade quântica: uma onda de significado que afeta o mundo real sem nunca colapsar em certeza. Pela simples possibilidade de ter ocorrido — e à medida que Riobaldo cada vez mais acredita nisso, reinterpretando os eventos e aprendizados que viveu — ele conquista a confiança necessária para agir, tornando-se líder do bando e co-criador dos destinos no sertão.
E entre as inúmeras histórias possíveis, há aquela que Rosa nos conta—uma que se abre para cada leitor, permitindo-lhe interpretá-la conforme suas próprias veredas internas. Um livro assim é um portal de significados aberto entre autor e leitores;
Guimarães brinca com a metafísica como um físico brinca com partículas. Ao manter a questão do pacto em suspenso, ele empurra a dúvida para além da fé e da descrença, abrindo um multiverso de interpretações. O invisível se faz real. O imaginário se impõe ao concreto. A literatura, como a mecânica quântica, nos ensina que a realidade não é um bloco fixo e definitivo, mas um campo de possibilidades oscilando entre o ser e o não ser.
Talvez resida aí uma das grandes esperanças humanas: a de que exista, ainda que em pequena medida, um grau de livre-arbítrio — a capacidade de, no calor dos acontecimentos, intuir o rumo certo a partir de uma segurança interior que não exige provas, apenas presença. Algumas chances, em conflito entre si para emergirem, parecem depender de nossa participação para que tenham maior probabilidade de sucesso. Um dos aspectos mais marcantes do romance é justamente a confiança na confiança. Riobaldo cria um feitiço para si mesmo — é fisgado por ele — e, enquanto tenta compreender o sertão, entre tropeços e desafios, mas com desenvoltura crescente, transforma-o à sua maneira. Resiste ao desgaste do tempo até que os acontecimentos finais coroados por sua trajetória confirmem a força de uma fé rara: aquela que nasce do próprio caminhar e da reflexão que o acompanha.
O que Guimarães nos entrega é mais que um romance: são passagens pelos
intricados portais que o sertão abre. Veredas. E a jornada, uma viagem pela
alma humana surfando a onda piloto nos efeitos que ela mesma ajuda a produzir, ajuda a fornecer alternativas, e quem sabe permita conduzir ao espaço-tempo onde
as palavras soam como passos no chão duro e cada frase carrega imagens
sobrepostas de algo infinitamente maior. Ao final, quando tudo parece se dissipar no ar
quente do sertão, a última palavra do livro é o que sempre foi: travessia.
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