Parindo o homem

 


         

Na aparente tranquilidade do universo primordial, no infinito mar de potencialidades que antecedeu ao tempo, apenas as vontades existiam. Elas viviam por um doloroso e incompreensível instante e logo se dissolviam no nada. Jamais geravam acontecimentos. Eram como pensamentos soltos e desconexos, sem pertencer a tempo ou lugar. 

O maior desejo de cada vontade, de cada embrião de pensamento, era descobrir e conhecer profundamente todas as outras. Os meios materiais, no entanto, ainda não existiam. O intercâmbio de sensações e informações era impossível. Todas as vontades buscavam uma orientação, mas não fluíam, nem convergiam com liberdade. Os infinitos arranjos tornavam complexa a realização do sonho secreto e comum.

Na ausência de soluções, uma forte opressão era gerada. A imposição de quietude provocava uma grande instabilidade no nada. Potencialidades permaneciam eternamente sendo tudo o que poderiam ser, mas sem jamais se tornarem algo. Para a vontade de conexão, no entanto, a angústia era ainda mais intensa. Sua existência estava em risco e, mais grave ainda, o problema de todos parecia ser justamente a viabilidade de sua essência.

A passividade a colocava em risco e, por consequência, também o bem estar geral. A ansiedade por não encontrar a solução a fez mergulhar internamente em busca de alternativas. Ironicamente se isolou, acelerando por uma via contrária à sua natureza. O medo de se testar, apresentava o pior dos cenários, a sua incapacidade para existir. Adoraria que todos compartilhassem o impulso de se conectarem, mas aguardava ansiosamente esse acontecimento como expectadora. Compreendia o risco de perder o momento adequado devido à hesitação, porém, temia mais a imposição limitante de sua presença.

Seu objetivo parecia claro: permitir que cada vontade se expressasse livremente, criando conexões naturais e abundantes para que todos os recantos fossem alcançados. Qualquer solução forçada seria uma grande ilusão. Desta maneira, os próprios limites não seriam ultrapassados. Inexistiria o outro. Tudo seria apenas uma aventura expansionista. A desculpa perfeita para inatividade confundia-se perigosamente com a justificativa real.

Quando todos os recantos internos haviam sido explorados e o desânimo começava a dominá-la, a vontade de conexão encontrou seu centro. E lá, na frieza da solidão, seu oposto, foi onde finalmente pode perceber ser ela própria a razão de tudo o que lhe afligia impedido o bom desenvolvimento do mundo à sua volta. Encontrou também a resposta do porquê de um pouquinho do oposto de cada um estar guardado a sete chaves em nosso interior: “Na viagem interna que todos embarcarão um dia, deve haver um exemplar de tudo, até mesmo daquilo que nos causa mais repulsa.”

“Não há como resgatar a pequena parte que falta de nós presa no desconhecido, sem enfrentar o maior dos medos e romper para conhecer a essência deste desconhecido escondida em nosso interior. Este é o caminho mais curto para o conhecimento e para felicidade. Somente a partir de então, será possível a expansão externa na busca de nos reconhecermos dentro do outro.”

Na espera de um instante que lhe pareceu eterno, ocorreu a grande cisão que deu início ao tempo. Num movimento espiral, dor e prazer foram separados, podendo coexistir distanciados pelo tempo. Os opostos deixaram de se aniquilar e passaram a se alternar em dominância. A intensidade de um era medida pela quantidade do oposto dentro de si. A conexão descobrira, através de uma repentina e violenta expansão, após um demorado e exaustivo recolhimento, que provavelmente simbolizava o que todos aguardavam para ampliarem seus horizontes. Não poderia mais se esconder, seria covardia após a compreensão. 

A sensação de tempo fez tudo parecer real, mas tornou insuportável a dor da solidão. A utilização das antigas desculpas para justificar a não participação no processo que, em suma, era sua essência não encontrava mais acolhida. A força inventiva da criação era mais do que nunca necessária. Aquele sofrimento, de tão intenso, o fez se sentir vivo, empolgado para realizar seu objetivo: ajudar todos os outros pensamentos e vontades a estenderem suas potencialidades pelas inúmeras formas de combinação entre eles. 

Houve espontaneidade, apesar de jamais ter imaginado que daria o primeiro passo. A sensação nasceu dentro, o preencheu e ganhava o mundo com clareza e graça. Uma das possibilidades se transformara na convicção de realizar. Atividade em fim! E na rapidez que lhe surgiam novas idéias o entusiasmo permitia que tudo fosse automaticamente confeccionado. O início do tempo forneceu à mais remota das possibilidades uma chance e o universo recém experimentado se tornou uma gigantesca fábrica de sonhos.

O desequilíbrio irradiou a energia armazenada na angústia permitindo a criação dos meios materiais através de sucessivas transformações. Na etapa final desse processo a energia se materializa ao decantar, numa espécie de "chuva cósmica" tal como a “água” finalmente se torna mais visível e acessível ao condensar. 

A alegria substituiu o incômodo. Dois ou mais poderiam finalmente compartilhar espaços antes inacessíveis. A conexão se sentiu em paz, como se convidasse todos a compartilharem vivências e se unirem. Embora não compreendesse completamente o que vivenciara, já imaginava o alcance de suas ideias. Surgia a expectativa daquela sensação transbordar e preencher todo o espaço até alcançar o mais desgarrado. Poderia até começar por este. Afinal, quando encontramos um pedaçinho nosso no interior daquele mais distante e diferente, todos ao meio do caminho já estão abraçados. Jamais imaginara ser o protagonista de acontecimentos tão vivificantes e surpreendentes, mas finalmente entendeu porque não deveria ter agido anteriormente. Não estava preparado. Havia um componente de espontaneidade para aquela intensa sensação emergir, era preciso atravessar a dor, vencer o medo, irromper. "Tudo tem o seu tempo... tempo ao tempo e com o tempo tudo compreenderás..."

Novas perguntas surgiam uma após a outra. Seria ela realmente o ponto inicial de toda transformação? Será que outros já não haviam compreendido e aquele era apenas o seu momento de claridade? Será que estava viva, morta, ou apenas quando se morre é que se vive? A descoberta da solução desencadeara aquela “emoção” tão fantástica? Ou aquela sensação, justamente por ser tão extraordinária, fora um dos fatores essenciais para revelar um segredo? Nada mais perturbava, mesmo sem todas as respostas sabia, sendo o primeiro ou não, que todos teriam uma chance, cada um ao seu tempo. A conexão era possível e esse era o grande acontecimento a celebrar. Daquele ponto em diante todas as dúvidas se transformariam em curiosidades a serem oportunamente desvendadas. O fato de ter dado um passo à frente, o sentimento de ter idealizado como cumprir o seu propósito de existência era felicidade demais para preencher o momento.

O pensamento da conexão finalmente aderira a todo o resto. A amarra se confundia com seu próprio ser. Ao se desvendar ele respondeu a maior das questões, a que parece diferente para cada um, mas obrigatoriamente conduz todos ao mesmo “lugar”. Também compreendeu que a cada tempo existirá sempre uma parte do todo que não será revelada, e que isso não deva incomodar. A tentativa de desvendar um a um os mistérios parece ser o caminho mais acertado e divertido. Mesmo quando o todo parece inalcançável por uma questão sempre levar a outra. O que falta para completude é o que a tudo une. A certeza da necessidade da incerteza instiga ainda mais a expansão de consciência.

Talvez, o motivo para cada um guardar uma pequena parte do segredo total, seja obtermos enorme prazer através da partilha. Muitos desejam sempre o máximo, mas poucos, seja devido ao medo, ou ao egoísmo, revelam aos outros a parte do segredo que receberam da vida. Como o tempo de cada um precisa ser respeitado até que o último se integre e tudo seja acessível, a incerteza será, por tempo indeterminado, nossa acolhedora companheira espelhando o funcionamento básico universal.  

Na pura abstração do universo primordial, o desejo de cada parte era conhecer profundamente todos os outros. Compreender a privação inicial a que todas as vontades foram impostas é angustiante. A idéia de conexão era de um, mas com potencial latente presente em todos. O sonho era o de um criador: a realização da natureza nos seus infinitos caminhos e graças a uma lucidez momentânea a pergunta para conexão mudara de "por que fazer" para "como realizar" e isto representava um enorme avanço. Quando adquirimos a confiança para agir, normalmente já possuímos as respostas necessárias e o que porventura faltar será parte do processo. A intenção é a maior das forças existentes, dela advém toda a criação. 

Ao analisar a natureza dos pensamentos e vontades, bem como sua capacidade de existir em múltiplos locais simultaneamente, surgiu a necessidade de uma espécie de rádio-recipiente capaz de receber, processar, organizar, analisar e transmitir informações. Tudo numa embalagem na qual grande quantidade pudesse ser armazenada formando uma consciência daquele grupamento. Ela seria a resultante das iterações entre as forças internas. Lá, as vontades deveriam se harmonizar para manifestação no mundo externo. Como os pensamentos poderiam estar em mais de local, uma consciência poderia se conectar a várias outras, possibilitando aos capazes desvendar os inúmeros enigmas, e, com sorte, um dia acessarem o coração da verdade que tudo interliga.

O conceito estava pronto e seguia por dois caminhos. O grande: Cérebro, homem, terra, sol, galáxias, multiversos. E o pequeno: Cérebro, célula, molécula, átomo, quark, flutuações quânticas. O mais perturbador é que a ideia surgia do centro para as pontas e expandia em todas as dimensões.  Restava então a produção desse “radio-recipiente”, talvez integrando um ser capaz de experimentar emoções e associá-las aos pensamentos captados nas experiências vividas. Inúmeros desses seres deveriam existir. Todos carregando sua própria história e consciência. O ambiente precisaria admitir a constante interação entre eles e que toda sorte de acontecimentos fosse possível. Cada um realizaria um caminho diferente para que todas as vias pudessem ser percorridas.  Aos que recebessem a sorte de andar por passagens mais prazerosas, deveria ser fornecido o entendimento de que para viabilizar aquela travessia, outro necessariamente estaria transitando numa rota mais complicada. Essa sensibilidade, a capacidade de enxergar a dor do outro e diminuí-la através da aproximação é a essência da conexão. É a chama necessária para que o lado iluminado e ativo dê o passo decidido rumo ao seu complemento.

Assim, a criatura mais interessante e complexa foi produzida. Todos os caminhos necessários se realizaram com naturalidade. A existência se transformara na tensão entre o expandir do espaço-tempo e o agrupar gravitacional; um eterno respirar! Tudo pelo desejo de produzir o portal: O homem, o ser mais especial! O capaz de conquistar a admiração dos deuses, mas também das animalidades mais primitivas; o capaz de amar e sentir compaixão, mas também de causar guerra, dor e ódio; de pensamentos elevados e de ações sublimes, mas também o traidor, o invejoso, o de coração volúvel; o capaz das realizações mais fantásticas e de criações magníficas, mas também o destruidor voraz; de experimentar e provocar as mais agradáveis sensações e por outro lado espalhar o mal estar com sua eterna ingratidão. O homem seria inclusive desprovido de vontade própria até que algo semelhante ao ocorrido com a vontade de conexão acontecesse em sua própria vida, permitindo, apenas a partir de então, o real livre arbítrio proveniente da capacidade criativa. Ele seria uma espécie de miniatura do cosmos, com equivalente potencial para o mais belo e para o mais destrutivo. Nele o pensamento da conexão encontraria sua terra úmida para viver e multiplicar.

Atualmente vivemos num universo aparentemente material, o oposto da condição inicial. Com frequência questionamos se nossa consciência é dissipada com o fim de nossa existência física. Esse mistério, que a muitos intriga, somente incomoda quem se esquece ser justamente este o tempero da vida; o que nos faz valorizá-la ao extremo. Apenas quando deixamos de ser um aglomerado desordenado de sentimentos e pensamentos para nos tornarmos um conjunto orientado e harmonizado por um coração, valorizamos e alimentamos a maior idéia da criação. Descobrimos assim o amor, a compaixão e a esses sentimentos associamos as mais fortes emoções. Vivemos experiências intensas e atravessamos caminhos únicos. Paramos em estações onde vários também aportam. Checamo-nos. Muitas vezes apenas num olhar, num toque, num gesto. Trocamos nossas bagagens e continuamos viajando com o sentimento e com o desejo de que nossa consciência não desapareça, nem mesmo com a ausência do meio físico que a transporta. Quem sabe possamos ao menos afirmar que ela nunca perderá importância, nem mesmo quando nossa parte “veículo” perecer. O trabalho que cada um realizou, despertando, juntando os pedaços e os ligando a todo resto (foi, é, e será) importante, com repercussão muito além do nosso período de vida; jamais pode ser desvalorizado. Cada um é aquele pedacinho sem o qual o todo jamais seria o que é; com cuja ausência a seqüência dos eventos que define essa grande história na qual estamos inseridos jamais seria a mesma.

Tanto na matemática, como preenchendo o esplendor do cosmos, encontramos infinitos dentro de infinitos ainda maiores. Se considerarmos as enormes distâncias envolvidas podemos garantir que todas as condições de nossa localidade eventualmente se repetirão, partícula por partícula, estrela por estrela, galáxia por galáxia. Podemos pressupor então, que o conjunto identificado como nossa consciência eventualmente despertará para deliciosa e dolorosa atividade da vida em mais de um espaço e tempo. Essa estranha garantia de imortalidade, no entanto, não deveria servir de conforto e nem desviar nossa atenção de onde podemos realmente fazer a diferença: Aqui e agora!

A força atrativa existente em cada parte eventualmente nos aproximará.

Um dia estaremos todos juntos.

O lugar, aparentemente pequeno, guardará a imensidão.

Estaremos enfim prontos para um novo big-bang espiritual.

  

(*) O trecho entre aspas foi colhido há muitos anos na internet. Pesquisei atualmente e não consegui identificar a autoria.   

 

                       

Comentários

  1. Caso exista uma consciência transcendente ao nosso tempo-espaço, esse texto tenta ser uma versão emocional para o início de tudo.

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  2. O universo surgiu do caos ou de uma vontade primordial? O que nos conecta a tudo que existe? Neste ensaio filosófico, exploramos uma narrativa de criação onde a solidão cósmica deu origem à consciência, e o desejo de conexão moldou o homem como um portal entre o micro e o macrocosmo. Uma viagem pelo pensamento que une mitologia, ciência e espiritualidade.

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