O uso do conhecimento na era digital

                                             

Outro dia, assisti a um bate-papo interessante entre João Ubaldo Ribeiro e Fernanda Torres, no qual ele argumentava mais o menos o seguinte: no passado, o conhecimento era um privilégio restrito àqueles que tinham acesso a livros raros, enciclopédias, grandes bibliotecas e círculos intelectuais exclusivos. Os eruditos se destacavam não apenas pelo que sabiam, mas também pelo que os outros não tinham como saber. A posse da informação é que os posicionava no topo da pirâmide.

Eu sempre tive a impressão de que alguns ostentavam esse saber com certo pedantismo, enquanto os verdadeiramente sábios dominavam o conhecimento, mas nem sempre encontravam com quem dialogar. De qualquer forma, quem possuía informação ou dominava vários idiomas tinha um status diferenciado na sociedade.

Hoje, porém, qualquer dado está a um clique de distância. Tradutores automáticos funcionam em tempo real. O diferencial já não está mais na acumulação de informações, mas na capacidade de interpretá-las e combiná-las de forma inovadora. O que realmente importa agora não é o que alguém sabe de cor, mas o que consegue fazer com o que está acessível a todos. (isso também era parte do raciocínio do Ubaldo)

Com o avanço da inteligência artificial, da robótica, da computação quântica e da interconectividade global, o futuro pertencerá a quem souber pensar criticamente, conectar pontos dispersos e extrair sentido do caos informacional.

Nos próximos cinco anos, veremos uma explosão na automação do conhecimento, com cada vez mais decisões sendo delegadas a algoritmos. Isso tornará essencial a habilidade humana de formular as perguntas certas e aprimorar a lógica do pensamento, tanto para supervisionar esses processos quanto para conectar ideias além do nível básico das respostas algorítmicas. Nesse contexto, a riqueza das experiências de vida será ainda mais importante,  enxergar, sentir e estabelecer conexões que nem as máquinas, nem a maioria dos humanos conseguem alcançar, permitirá o destaque que antigamente era destinado aos eruditos.  

                 

Em dez anos, o grande desafio será preservar a identidade e a autonomia intelectual em um mundo onde a informação será tão fluida e onipresente que poderá nos seduzir a deixar que as máquinas decidam por nós. Como nos romances distópicos, o risco não será apenas a dependência tecnológica, mas a padronização do pensamento. Nesse cenário, os verdadeiros protagonistas não serão aqueles que apenas possuem conhecimento, mas os que souberem navegar nesse mar revolto e reinterpretar a realidade com um olhar pessoal, resistindo à homogeneização imposta pela tecnologia e pelas pessoas, governos e corporações que as detêm.

Até pouco tempo, eu costumava armazenar em meus computadores tudo o que considerava relevante—um verdadeiro acervo cultural e educacional, repleto das minhas músicas preferidas, vídeos inspiradores e conteúdos que julgava indispensáveis para rever de vez em quando. Era uma forma de preservar o que me parecia essencial, como se estivesse criando um refúgio pessoal contra a volatilidade do mundo digital que ainda engatinhava naquela época.  

                     

Hoje, no entanto, tudo está nas mãos de grandes empresas que armazenam e comercializam as informações e suas transformações. O Spotify guarda as músicas, o YouTube cataloga os vídeos, e a nuvem promete armazenar tudo para sempre—ou pelo menos enquanto isso for conveniente para quem controla os servidores. Mas percebo que, pouco a pouco, algumas coisas já se perdem. Outro dia, tentei, sem sucesso, encontrar um vídeo bobo de que gostava. Como tinha poucas visualizações e o canal onde estava hospedado foi encerrado, simplesmente desapareceu. Se eu tivesse guardado comigo, ainda o teria. Dessabores da vida moderna. 

Houve uma época em que eu temia um apagão tecnológico que nos lançaria em uma nova Idade das Trevas, negando abruptamente o acesso ao conhecimento e apagando tudo o que considerávamos fundamental. Poderia acontecer por obra de um tirano em algum país ou até por uma nova ordem mundial. Com o tempo, percebi que essa preocupação era um tanto exagerada, mas, diante dos absurdos recentes—guerras, censuras e o domínio das big techs por interesses nebulosos—, confesso que uma pequena paranoia ainda insiste em voltar.

Essa inquietação se intensifica quando observamos a real qualidade dos líderes atuais, tanto no cenário político, quanto no corporativo. Como estão sempre visíveis e falando o tempo todo, parte do respeito que antes se tinha por suas posições e conquistas se dissolve diante de declarações completamente alienadas e de um descaso evidente com o que realmente importa para o futuro da humanidade e do planeta. Pior ainda, muitos desses líderes parecem caminhar na contramão do real progresso. Alguns chegam a despertar pena; outros, profunda preocupação pelo imenso poder que uma mente tão limitada pode alcançar—e pelas consequências disso.

Se, por um lado, a abundância de informação tornou o conhecimento mais acessível do que nunca, por outro, a forma como consumimos esse conteúdo tem provocado grande preocupação. A exigência por rapidez e facilidade, impulsionada pelas redes sociais e pelos algoritmos que priorizam engajamento instantâneo, tem levado à atrofia do pensamento mais elaborado.

Cada vez menos pessoas se dedicam à leitura de textos densos, reflexivos ou minimamente estruturados. Ensaios, novelas e romances foram substituídos por fragmentos, postagens curtas, vídeos rápidos e manchetes sensacionalistas. O problema não está apenas na superficialidade da informação, mas também na crescente dificuldade de conectar ideias de forma profunda, desenvolver um pensamento próprio e sustentar uma linha de raciocínio mais elaborada.

O que antes acontecia de maneira quase intuitiva—ler, refletir, relacionar e absorver o conhecimento, se tornou hoje um desafio para muitos. A grande maioria vive imersa numa rolagem infinita de conteúdos fugazes.

Essa mudança não afeta apenas a cognição individual, mas tem impactos sociais profundos. Jovens que cresceram nesse ambiente hiperestimulante demonstram uma tendência maior à ansiedade e à depressão, muitas vezes incapazes de filtrar ou processar a enxurrada de informações e estímulos que recebem diariamente. Carregam a sensação constante de estarem atrasados, de nunca saberem o suficiente. Somando isso à fragmentação do pensamento, percebemos que um estado de inquietação permanente é gerado numa fase da vida que raramente enfrentávamos esse tipo de ansiedade. Aspectos sociais decorrentes dessas transformações podem gerar cenários ainda mais desafiadores para o futuro.

Para aqueles que já possuem uma base sólida, a tecnologia pode ser uma aliada poderosa. Mas, para quem ainda está em formação, a ausência de um pensamento estruturado pode comprometer a capacidade de adaptação numa etapa crucial da vida. Onde definimos, relacionamentos, hobbies, profissões. Precisamos, com urgência, regulamentar e supervisionar os processos que envolvem a interação humana com a tecnologia. Especialmente na base da nossa população.

                     

Vivemos em uma era dominada pela tecnologia, mas, paradoxalmente, sabemos cada vez menos sobre seu funcionamento. Carl Sagan alertava para os perigos dessa contradição: primeiro, ao delegarmos a condução da ciência e da tecnologia a poucos especialistas, sem que a sociedade compreenda seus princípios básicos, criamos um cenário instável, onde decisões cruciais podem ser tomadas sem verdadeiro embasamento ou questionamento. O segundo perigo é ainda mais sutil: sem um pensamento crítico treinado, nos tornamos vulneráveis a discursos manipuladores—sejam eles políticos, religiosos ou corporativos—aceitando verdades prontas sem contestação. Essa combinação entre ignorância e submissão já foi imaginada por E. M. Forster em The Machine Stops, onde os humanos, confortavelmente dependentes de uma máquina que governa suas vidas, perdem tanto a autonomia prática quanto a capacidade de questionar. O maior risco não é apenas sermos controlados pela tecnologia, mas nos tornarmos passivos diante dela, deixando de interrogar, refletir e decidir por nós mesmos. Quando a última centelha de ceticismo se apaga, não somos mais cidadãos, apenas peças de um sistema que roda sozinho. Educação adequada e olhar atento são os antídotos indicados por Sagan para minimizar o problema da distância entre o avanço tecnológico, a concentração de poder e o conhecimento humano democratizado. Em países em que a desigualdade social é elevada o trabalho deve ser ainda mais intenso. Até para que esses países existam num futuro próximo. 

E então? Como garantir que a evolução tecnológica amplie, e não reduza, a profundidade intelectual? Parte da resposta foi dada ao longo do texto, mas ideias são sempre bem vindas.

Afinal, ou encontramos um equilíbrio entre velocidade e profundidade, entre acesso fácil e compreensão real, ou corremos o risco de reduzir o conhecimento a um acúmulo raso de dados sem alma. E, nesse cenário, nós nos tornaremos as máquinas—biológicas, talvez híbridas, mas ainda assim programadas para servir. Instrumentos de empresas, marionetes de líderes sem espírito, ou meros pontos de consumo.

                                 


Comentários

  1. Maravilhoso o texto… o que fazer com a informação de forma prática,criativa, crítica e individual será a chave para se destacar daqui p frente …

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