Meia Peperoni; Meia Portuguesa; com acréscimo de Absurdo !!
Dizem que o mundo nunca foi tão absurdo. Mas não seria um absurdo dizer isso? Imagine contar isso a alguém que viveu na Idade Média, no meio de uma peste ou, pior, sem Wi-Fi. Eles provavelmente responderiam: "Absurdo é não ter pão!" Mas, para quem cresceu antes dos celulares e hoje vive cercado por assistentes virtuais e algoritmos que sabem o que você quer antes de você e tentam te controlar... bom, absurdo parece o termo certo.
O movimento teatral que floresceu na metade do século XX, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, no qual as peças exploram a falta de sentido da existência humana em um mundo caótico, desconectado de lógica ou propósito, foi denominado teatro do absurdo. Trata-se de um gênero que surgiu inspirado pela falta de sentido provavelmente ampliado na guerra fria após os dois grandes conflitos mundiais, mas parece ter se teletransportado para a vida moderna. Nele, personagens buscam desesperadamente uma orientação num mundo que insiste em ser ilógico. Samuel Beckett fez isso com dois sujeitos esperando alguém chamado Godot, que nunca aparece. Hoje, fazemos algo parecido, esperando a senha ser chamada enquanto o atendente resolve um problema misterioso no sistema.
Mas talvez o absurdo de hoje seja mais do que apenas uma questão de espera, medo ou desorientação. José Saramago certa vez observou que nunca estivemos tão próximos da caverna de Platão quanto agora. Vivemos cercados por telas que nos mostram sombras da realidade, e acabamos por tomá-las como a própria verdade. O mundo audiovisual nos aprisiona em uma simulação, um teatro de imagens onde confundimos representação e fato. A caverna, afinal, não era um lugar primitivo e distante—era um vislumbre do futuro. O que antes era metáfora virou paisagem cotidiana, onde consumimos realidade em pixels e acreditamos naquilo que nos chega pronto, sem questionar.
David Lynch, claro, foi além. Ele pegou a essência do absurdo e colocou coelhos vestidos como humanos em um sofá, trocando diálogos que fazem menos sentido do que a letra de Açaí, de Djavan.* E, pasmem, conseguimos ver algo familiar naquilo. Talvez porque, como os coelhos de Rabbits, estamos constantemente tentando decifrar um cenário onde as peças parecem todas fora do lugar e o tempo está embaralhado. A risada enlatada, sem motivo aparente, é como o Instagram te lembrando que alguém está feliz na Cochinchina.
Em Rabbits, David Lynch nos transporta para uma metáfora visual
desconcertante, uma espécie de espelho sombrio da vida contemporânea. Os
diálogos fragmentados, enigmáticos e aparentemente sem relação com o que
acontece na cena refletem nossa luta diária para encontrar lógica ou narrativa
em uma existência que insiste em não nos dar respostas claras. O cenário
repetitivo e claustrofóbico – uma sala escura, quase vazia, com um sofá que
parece ter sido esquecido pelo tempo – lembra as bolhas modernas em que nos
aprisionamos, seja no trabalho, no trânsito, ou dentro de uma caixinha chamada celular. E
então acontecem as rupturas de lógica narrativa: sons estranhos, risadas deslocadas e
silêncios incômodos, que repercutem o caos cotidiano dos canais de notícias onde
tragédias, memes e manchetes absurdas se misturam sem aviso.
Mas Lynch não para aí. Ele mistura o cotidiano com o surreal, transformando conversas banais em algo profundamente inquietante. É como nossos dias: um café derramado pode ser só um café... ou o gatilho para reflexões existenciais diante toda informação bombardeada em nossos cérebros. Os coelhos antropomorfizados de Rabbits, com suas expressões impassíveis e ações misteriosas, criam uma atmosfera de ansiedade e isolamento que, no fundo, dialoga com aquela sensação incômoda de que o mundo à nossa volta – com toda sua conectividade e avanço tecnológico – não dá a mínima para nossas buscas por sentido.
Lynch, como um mestre do desconforto, nos provoca com uma reflexão poderosa: “Não acho que todo filme deva ser entendido. Algumas coisas nos atingem emocionalmente ou intuitivamente, e não precisam ser completamente explicadas.
A linha que separa o real do surreal nunca esteve tão tênue. Notícias,
simulacros, inteligência artificial... tudo se mistura em um espetáculo
caótico, onde a verdade é fragmentada e o significado, escorregadio. É como se
estivéssemos vivendo em uma peça em que o roteiro foi perdido, e os atores –
nós – improvisamos sem direção. O público? Talvez sejamos apenas nós mesmos,
refletidos em telas infinitas.
Antes que você caia na tentação de pensar que nada disso faz sentido,
lembre-se de Albert Camus. Ele nos conforta de uma maneira estranha, mas franca
e elegante: "É, o universo não dá a mínima para você."
Talvez a maior importância dessa mensagem seja diminuir a presunção humana de achar que o universo nos favorece ou persegue. Em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa escreve: Deus é paciência. O contrário é o diabo. Se gasteja. O senhor rela faca com faca – e afia – que se raspam. Até as pedras do fundo, uma da na outra, vão se arredondinhando lisas, que o riachinho rola. Por enquanto, que eu penso, tudo quanto há, nesse mundo, é porque se merece e carece. Antesmente preciso. Deus não se comparece com refe, não arocha o regulamento. Pra quê? Deixa bobo com bobo – um dia, algum estala e aprende: esperta. Só que, às vezes, por mais auxiliar, Deus espalha no meio um pingado de pimenta.
A boa notícia é que podemos copiar a tática cósmica de indiferença
construtiva/evolutiva, e não nos preocuparmos demasiadamente em dominar seu manual de instruções. Camus
propõe algo libertador: aceitar o absurdo e, mesmo assim, fazer disso um
espetáculo digno. Rolar a pedra montanha acima, como Sísifo, e rir da ironia de
tudo.
Pode ser que, analisando a perspectiva de cada ponto, de cada indivíduo,
seja mesmo difícil – ou até impossível – determinarmos um sentido. Mas
convém lembrarmos que somos parte integrante de uma história maior e que
talvez as interconexões e o propósito delas estejam além de nossa compreensão.
Enquanto tentamos decifrar o sentido da vida – ou pelo menos das
pequenas coisas do dia a dia –, talvez devêssemos lembrar que cada passo, cada
escolha e cada momento são como peças desse quebra-cabeça maior. Não é preciso
que tudo faça sentido a cada momento para um recorte infinitesimal da natureza chamado homem. A essência da vida está na própria jornada: viver
com curiosidade e propósito, contribuindo para a história maior com gestos
simples, responsabilidade e, sempre que possível, um pouco de amor.
Encontrar beleza nos momentos desconexos é o grande desafio. Rir dessa grande
piada sem aparente sentido, e lembrar que a falta de lógica pode ser um dos temperos que faz a vida... bem, viver.
E se tudo falhar, peça uma pizza. Porque, no fim, até o absurdo merece
um acompanhamento decente.
* Brinquei com a letra de Djavan que parece não fazer sentido, mas, sabemos que isso não aconteceria tão facilmente com um compositor desse calibre, a não ser que a proposta da música fosse essa.
parabéns pelo texto, excelente!
ResponderExcluirObrigado!
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